Como contar uma história - RPG e Literatura

Antes de ler, verifique se o seu teste de percepção foi bem-sucedido.

Como se conta uma história? As respostas mais rápidas que vêm à cabeça com certeza são livros, filmes e séries, afinal, essas são as formas mais comuns utilizadas atualmente para contar uma história, porém existe uma feliz crescente na popularização da minha forma favorita de contar — e viver — histórias: o RPG.

RPG é uma sigla em inglês para Role Playing Game, algo como Jogo de Interpretação em uma tradução livre. Nesse jogo, você cria e interpreta uma personagem, sendo guiado ao longo da aventura pelo “mestre”. O mestre funciona como uma espécie de narrador e moderador da aventura, mas, apesar do título imponente, não é de forma alguma onipotente ou onisciente, como veremos mais à frente. Você inclusive já deve ter visto pelo menos alguma menção a esse jogo em várias outras mídias como filmes e séries, mas ele já foi e continua sendo inspiração direta para a criação dessas mesmas mídias, como é o caso da velha clássica animação “Caverna do Dragão” e, mais recentemente, da animação “Cyberpunk: Edgerunners” e do filme “Dungeons & Dragons: Honra Entre Rebeldes”, além também de já ter originado diversos livros e quadrinhos, como os da série “Tormenta”, um cenário totalmente brasileiro que possui uma trilogia de romances (sobre a qual já tivemos uma resenha aqui), e os Romances de Clã, baseados em “Vampiro: A Máscara”, que se passam em diversas cidades e períodos históricos do nosso mundo. 

Enquanto fazia minhas pesquisas para escrever este texto, encontrei uma frase que me pegou de surpresa. 

“RPG e literatura são acontecimentos — eles existem quando alguém interpreta e valida um ‘mundo’.”

De fato, jogar uma campanha de RPG é mergulhar em um mundo, da mesma forma que fazemos ao ler um livro, você vai conhecer personagens que vai amar e odiar, e vai ver a trama se descortinando a cada sessão que joga, assim como acontece conforme avança pelos capítulos de uma história, mas agora você tem o poder que é o sonho de todo leitor, você tem o poder de mudar a história quando quiser!

Porém, sendo o RPG um jogo mais comumente jogado em grupo, você não é o único autor dessa história. Você de fato tem o poder de mudar a história toda, mas todos os outros jogadores também. Enquanto controlam suas personagens individualmente, cada um molda e dá forma à história como um todo. É claro que isso causará alguns conflitos, assim como na nossa vida, cada personagem segue seus próprios ideais e convicções; discussões não só são inevitáveis, como na verdade são necessárias. Cada vez que as personagens discutem entre si, cada tomada de decisão que é feita, agradando ou não a maioria, todos esses conflitos são a fundação da história e dão profundidade e enriquecem a campanha como um todo. Não é nenhum exagero dizer que você e quem mais estiver jogando estarão ativamente participando de uma autoria coletiva. Mas, quando se trata do RPG, a autoria coletiva ganha uma forma totalmente nova e diferente da que conhecemos normalmente na literatura, pois é impossível destacar individualmente responsáveis pela história final. No fim de uma campanha, a história que temos é mais do que um compilado de histórias escritas sozinhas, ela é o fruto das interações entre essas histórias e a própria história do mundo, entrelaçadas de formas tão diversas e profundas que não se pode dizer onde uma começa e a outra termina.

“Mas não existe um tal de mestre nesse negócio aí?”, você pode estar se perguntando, e, de fato, dentro do RPG existe a figura do “mestre”. No entanto, ao contrário do que pode parecer, essa pessoa não seria o equivalente ao autor de um livro para essa história, o mestre está, no fim das contas, em posição de igualdade com os jogadores, ele é apenas um guia.

Essa condução, porém, não é feita pelo mestre com uma predeterminação absoluta dos fatos e eventos que ocorrerão durante aquela campanha, ela é feita descrevendo o caminho que os jogadores escolhem para as suas personagens e as consequências de suas ações enquanto interagem com o mundo em seus mínimos detalhes. O mestre em si pode ser visto como uma resposta à ação dos personagens-jogadores, um narrador que sabe apenas um pouco mais do que você como jogador, mas que está também completamente à mercê das suas ações.

Quando “monta” a narrativa, o mestre tem certos objetivos em mente para aquela campanha, ele pode apresentar aos jogadores uma história sobre um reino governado por um tirano, antecipando algumas escolhas que os jogadores podem tomar, mas os jogadores, enquanto personagens, e diferentemente de leitores convencionais, escolhem o que querem “ler” daquela narrativa. Talvez o seu grupo tenha decidido que tem interesse em derrubar o tirano e instaurar um reinado justo para a cidade, e esse é um dos finais que já havia sido antecipado para a campanha, mas talvez vocês decidam que o tirano precisa ser parado porque vocês desejam tomar a cidade para si, ou talvez vocês decidam que a cidade nem era tão legal assim e que seria muito mais interessante explorar o mundo, indo em uma direção completamente oposta à da história proposta inicialmente pelo mestre e deixando a cargo dele conduzir vocês por esse novo caminho que suas personagens decidiram tomar, independente se isso estava ou não dentro do que ele havia “montado” para a narrativa.

E, assim, a cada sessão que se passa da campanha, através de um jogo de velar e revelar detalhes sobre o mundo, personagens dentro dele e até mesmo consequências ocultas para as ações dos jogadores, o mestre cria vários clímaces em sua narrativa que, junto das ações dos jogadores e interações de suas personagens com o mundo, vão preenchendo as lacunas do “livro” que seria a campanha.

Se você me perguntar se eu acho que RPG é uma forma de contar histórias ou não, me vejo na obrigação de te dizer que sim, ouvir o relato de alguém empolgado contando sobre a aventura que está jogando com seus amigos se iguala facilmente a ouvir o audiobook de uma saga fantástica para mim, só que com os comentários do diretor ligados. Existe, é claro, quem questione se uma história construída de forma tão “caótica” e sem planejamento pode se equiparar à leitura de um livro, que é tão mais “organizado”, mas acredito que isso vai levar ao questionamento de “o que é literatura?”, que por fim leva a “o que é arte?”, e todo mundo sabe como acaba essa história. Minha recomendação pessoal completamente imparcial e neutra é: joguem RPG e descubram como é.

Foto de André Ayala um homem branco de cabelo e barba curtos, usando uma regata branca e uma corrente no pescoço. o fundo é um oceano ou lago.

A. Night Ayala, nascido em 1991, é um escritor carioca e bissexual com um gosto especial por escrever diversos tipos do fantástico, possuindo o livro “Caçadores: O Crepúsculo do Caçador” publicado pela editora Viseu, além de alguns contos publicados na Revista Literatura Fantástica.

Conheça o trabalho dele aqui.

Revisão: Mile Cantuária

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