Por que não gosto tanto de livros nacionais?

Verifique antes de ler se o título não é um clickbait.

Depois da verificação, você pode até achar que foi um título clickbait e, se for o caso, não vou julgar. Afinal, a verdade é que eu gosto tanto de livros nacionais que, se dependesse de mim, a proporção encontrada em livrarias seria de 60% de livros nacionais, 20% de livros estrangeiros escritos originalmente em língua portuguesa, 15% livros latinos e apenas 5% de outros.

Mas a verdade é que, assim como outros leitores, quando resolvi ler mais livros brasileiros contemporâneos, percebi que eles não pareciam ser tão divertidos quanto os livros estrangeiros que eu estava lendo. Daí me perguntei: por quê?

A resposta pode ser um pouco anti-climática: nós gostamos mais da literatura estrangeira — anglófona, principalmente — porque o deus mercado quis assim.

Acontece que nosso gosto não é tão nosso… Ele é construído por nossas experiências e sofre influência do meio onde vivemos. Você pode achar que existe uma quantidade maior de livros estrangeiros nas nossas livrarias porque os leitores preferem livros estrangeiros. Mas é exatamente o contrário: as pessoas preferem livros estrangeiros porque existe uma proporção maior deles em circulação. 

É interessante perceber que, nas primeiras leituras de muitas pessoas, temos uma quantidade boa de livros brasileiros (principalmente graças ao Programa Nacional do Livro Didático e também de iniciativas próprias das escolas): desde a saudosa Coleção Vaga-lume até os gibis da Turma da Mônica. A coisa começa a mudar de figura, geralmente, na adolescência. 

De um lado, temos as aulas de literatura na escola exigindo clássicos em seu currículo. Deve haver, sim, essas aulas e devemos, sim, conhecer a história da literatura brasileira, mas como geralmente falta a mediação necessária entre contexto histórico e obra literária para uma boa apreciação das obras, geralmente essa é a fase em que começamos a dizer “literatura brasileira é chata”. Parece que é uma coisa para fazer provas, apenas. 

Quando quisemos ler por prazer, ler algo sem nenhum compromisso, o que as prateleiras das livrarias nos ofereciam (especialmente nos anos 2010s) eram sagas de livros anglófonos: Harry Potter, Percy Jackson, Crepúsculo, Jogos Vorazes… E, para completar, tinha a força de Hollywood invadindo nossa televisão e nossas salas de cinema com os mesmos títulos! Enquanto Machado de Assis nos acompanhou em momentos estressantes da sala de aula, Harry Potter nos acompanhou nos nossos momentos de diversão! Claro que vamos gostar mais de Harry Potter.

Veja bem, não tem nada a ver com a qualidade das obras. Machado de Assis continua, ainda hoje, sendo uma leitura muito divertida e é inegável sua riqueza literária. Temos e poderíamos ter ainda mais escritores que continuam o legado já construído na literatura brasileira, com livros atuais que fossem igualmente divertidos e bem escritos. Mas sem a experiência boa de leitura… É realmente difícil gostar disso.

Ao passo que podemos perceber que muita coisa “New York Times best-seller” não é tão boa assim. Mas independentemente da postura reacionária da J. K. Rowling ou dos mil erros de continuidade e coerência nos livros da Sarah J. Maas... crescemos lendo! Fizemos amizade compartilhando experiências de leitura, temos fandoms e tudo o mais. 

Não é exatamente nossa culpa ou falta de intelectualidade, síndrome do vira-lata e coisa do tipo. A vida é corrida desde sempre, ficamos cansados, e daí é mais fácil fazer aquilo que está no fácil. A literatura estrangeira é o que estava no fácil.

Agora, fazer a literatura estrangeira ser acessível para a população foi uma escolha de mercado, tocada pelas fornecedoras de livros: as editoras. Elas preferem comprar direitos de tradução a publicar originais brasileiros.

Claro, poderíamos também considerar uma série de políticas econômicas no Brasil desde os anos 1980 que abriram espaço para Hollywood. Daí, mesmo fora dos livros, já crescemos consumindo histórias que se passam em lugares nos EUA ou Europa. Sempre é Nova York, Londres, ou uma cidadezinha no norte dos EUA. Se é fantasia, temos um mundo que não passa de uma versão idealizada da Inglaterra Medieval.

Consequentemente, temos muitas memórias afetivas com esses cenários e personagens chamados John, Rose, Sally, etc. A tendência é que a gente goste mais de livros que tenham esses cenários e nomes familiares nas histórias, e rejeite essa coisa estranha que são livros se passando no Vale do Jequitinhonha com um personagem chamado “Zé das Abóboras” (aposto que achariam Pumpkin Joe mais maneiro). 

Daí as editoras podem achar mais fácil popularizar um John Green, um Brandon Sanderson, uma Nora Roberts do que construir a imagem de uma Socorro Acioli, um Wilson Junior ou um Moacir Fio. 

Essa é minha resposta caso você se pergunte: “Por que não gosto tanto de livros nacionais?”. Porque invadiram sua subjetividade com propaganda e deturparam seu gosto, pra você aceitar o que querem te empurrar goela abaixo. 

Ler e gostar de livros nacionais, da nossa própria cultura, é um ato de resistência. 

Agora se você se pergunta o porquê de quererem te fazer gostar mais de livros estrangeiros… eu trouxe esse papo sobre fundos financeiros estrangeiros comprando ações de editoras brasileiras no meu último texto

E se você percebeu que a maioria dos livros estrangeiros que gostamos foram escritos originalmente na língua inglesa… bem, só saiba que não é uma coincidência.

Por enquanto, me digam aí: qual livro nacional te fez perceber que você gosta, sim, de livros nacionais?

fotografia de rosto de Ícaro de Brito. Ele é um homem negro de rosto redonto com barba e bigode curtos e cabelo encaracolado, está usando uma camiza xadrez vermelha.

Ícaro de Brito, serial reader, escritor de romance, fantasia e ficção cientifica, violinista amador, marxista-leninista, é idealizador do Guia para Estudar Escrita Criativa na Internet e psicólogo nas horas vagas. Escreve ocasionalmente no blog Rascunhos Abertos e tem dois contos publicados na Faísca, você pode ler um, e ouvir o outro no podcast Assovio.

Revisão: Luiz Felipe Sá

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