Por um movimento brasileiro em defesa dos livros

Antes de ler, verifique se a sua defesa dos livros não foi incompleta.

Os livros estão caros. Sem essa baboseira de tentar mensurar um valor afetivo para justificar preços de 80 ou 200 reais. É caro, é inacessível, existem outras necessidades que ganham prioridade no orçamento do mês e outros lazeres que pesam menos no bolso. É isso.

Em 2020, durante o governo Bolsonaro, o então Ministro da Economia Paulo Guedes, em sua intenção de fazer uma reforma tributária que nos afundasse ainda mais no subdesenvolvimento, lançou uma proposta que, entre outras coisas, retiraria a isenção dos tributos PIS e COFINS que os livros físicos possuem. Na ocasião, houve uma grande mobilização em defesa do livro.

Foi uma batalha que vencemos, mas livros ainda são caros e, considerando que não temos bibliotecas públicas o suficiente, o acesso a eles ainda é difícil. Sem o acesso facilitado, é difícil manter uma cultura do livro no Brasil — o que permitiria que ele subisse na lista de prioridades do nosso orçamento mensal.

Apesar de concordar que livros ainda estão caros, também não acho justo dizer que as editoras fazem dele um artigo de luxo. Uma matéria do G1 fez um cálculo mostrando que o preço de capa de um livro é dividido entre:

  • 10% de direitos autorais — ou seja, para um livro de 100 reais, o autor recebe apenas 10 (a vida dos escritores não costuma ser glamourosa);

  • 5% de custos editoriais (revisão, projeto gráfico, ilustração, capa, copidesque e, no caso de livros estrangeiros, tradução);

  • 10% de custos industriais (papel, impressão e embalagem);

  • 15% de despesas administrativas (salários, marketing e divulgação, logística e eventos);

  • 5% de reserva para perdas diversas (estoque, adiantamentos de direitos autorais e contas a receber);

  • 5% de lucro para a editora;

  • 50% de margem para livrarias ou distribuidores.

E algo que me chama atenção nesse cálculo é que, aqui no Brasil, muitos dos gastos dependem da cotação do dólar. Bem, se estivermos falando de livros anglófonos (que, infelizmente, são a maioria dos que vemos nas livrarias), já temos gasto em dólar nos direitos autorais (que, nesse caso, inclui adiantamento!). Mas os custos industriais, especialmente o papel, também são em dólar.

Pagar em dólar é uma ótima pedida para encarecer produtos. O maior problema é que não precisávamos dessa cadeia pagando em dólar, poderíamos resolver tudo com a nossa própria moeda e ter mais possibilidades de baratear os livros. 

Primeiramente, poderíamos priorizar as publicações nacionais. Imagino que, mantendo os direitos autorais em 10% do preço de capa e ainda inserindo um adiantamento para os autores (não é prática comum para publicações nacionais), a conta final do custo de produção ainda ficaria mais barata. Em vez de pagar, talvez, 16 mil dólares de adiantamento para um autor estrangeiro, daria para pagar 16 mil reais para um brasileiro. Lidar com a nossa própria moeda deixa tudo mais barato — e nesse caso ajudaria muito na profissionalização dos escritores.

Isso não é feito porque as editoras são empresas privadas e, no geral, elas fazem a escolha consciente de investir no estrangeiro. Por quê? Suspeito que tenha a ver com seus acionistas que, em sua maioria, são estrangeiros. Tomemos como exemplo um dos nossos maiores grupos editoriais (talvez o maior): a Companhia das Letras. Atualmente, apenas 30% da empresa pertencem à família Schwarcz, que a fundou. Os outros 70% pertencem à Penguin Random House, uma empresa anglo-estadunidense que pertence a um conglomerado alemão de mídia chamado Bertelsmann. Não podemos esperar que esse monte de gringo vá querer que a Companhia das Letras invista em literatura brasileira, né? Não quando, através dos livros, pode-se abrir ainda mais mercado consumidor para os outros produtos midiáticos deles.

Continuando um novo manifesto em defesa do livro, acredito que deveríamos exigir mais esta medida para o barateamento: uma lei determinando uma cota de publicações brasileiras para permitir o funcionamento de qualquer editora em território nacional. Somos um país soberano, não é? Então podemos exigir isso! Eu ainda sugeriria a proporção de 60% de livros nacionais, 20% de livros estrangeiros escritos originalmente em língua portuguesa, 15% de livros latinos e apenas 5% de outros, para incentivar nossa integração cultural com a América Latina e com países lusófonos (especialmente africanos). 

Mas ainda teria o dólar do papel. Esse é muito surpreendente, porque aqui no Brasil temos a Suzano Papel e Celulose S/A, a maior produtora global de celulose de eucalipto. Claro que devemos levar em consideração o impacto ecológico da plantação de eucalipto, mas, caramba!, a maior produtora de celulose está aqui no Brasil. Por que compramos papel de empresas chinesas, finlandesas etc? Provavelmente essas empresas das quais importamos papel usam celulose da Suzano! Celulose brasileira! 

Acontece que, com a atual configuração de política econômica, esse modelo é o que mais compensa (mesmo significando livros mais caros). Por que isso? Porque desde o governo Collor, mas mais estabelecido no governo FHC, o Brasil vem sido dirigido por uma lógica econômica neoliberal que prefere manter o Brasil desindustrializado e como um exportador de produtos primários. O FHC, quando era presidente, assinou uma lei chamada Lei Kandir , que, apesar de aliviar a barra no imposto sobre a gráfica destinado a livros (art. 3º), na prática, torna mais barato manter uma operação de exportação de celulose do que uma operação de produção de papel. 

Então, em nosso novo manifesto em defesa do livro, devemos pedir alterações na legislação que define nossa política econômica. Se temos essa loucura de vender celulose e comprar papel por causa de algumas canetadas, precisamos de contra-canetadas para produzir nosso próprio papel. Aproveitando o ensejo, também precisamos lutar pela nossa infraestrutura de integração nacional e defender os Correios. Não podemos continuar com “frete grátis para todo o Brasil, exceto Norte e Nordeste”, não é mesmo? Tem muita gente no Norte e no Nordeste, e esse público também merece comprar livros!

Certo… talvez você esteja pensando: “mas, Ícaro, isso aí é porque você está apegado a livros físicos. Se investirmos mais em e-books, dá para resolver isso aí. Meu Kindle tá lotado”. E, se for o caso, devo lembrar algumas coisas.

Primeiramente, no caso das publicações tradicionais, temos uma predominância de publicações híbridas: livro físico e e-book. O projeto de cada livro é um só, então parte do custo do livro físico é transferido para o e-book. Significa que, se barateássemos o custo geral do papel, também baratearíamos o e-book. E, se queremos garantir o acesso dos livros a todo mundo, não podemos entrar nessa conversa de abandonar livros físicos, não é?

No caso das publicações independentes no Kindle Direct Publishing (KDP), também devemos considerar o alto custo pago pelos autores e o pouco retorno que costumam obter. Além disso, toda a gestão da venda dos produtos acaba ficando com a Amazon, que costuma ter uma postura bem ditatorial com os autores, não atendendo demandas básicas como maior segurança dos e-books, renegociação dos royalties por página lida no Kindle Unlimited, maior fiscalização com práticas de máfia ou uso de inteligências artificiais etc. 

Vale lembrar que aqueles preços baixíssimos da Amazon (mesmo em livros físicos) eram uma estratégia para estabelecer um monopólio. Sendo uma varejista multibilionária e multinacional, conseguiu quebrar a maioria das livrarias do país (que já vinham numa crise com as editoras por causa do modelo de consignação) e garantir o monopólio de um sistema de livros digitais muito bom. Uma vez que ficamos reféns, sem nenhum outro lugar que valha tanto a pena, a Amazon obviamente começou a falar grosso (como pode ser visto na última treta entre Amazon e Bookwire, que você pode ler aqui e aqui). 

Em defesa dos livros, tem algumas outras coisas que poderíamos cobrar do nosso governo federal para dar um freio em monopólios estrangeiros como a Amazon. Com a industrialização já defendida e com uma parceria com as universidades federais, poderíamos desenvolver nossos próprios servidores de internet e, depois, nosso próprio marketplace, com espaço para um análogo ao Kindle Direct Publishing e até com um e-reader próprio. Além de baratear toda a operação — afinal, continuaríamos usando nossa própria moeda —, geraria muitos empregos e a renda necessária para as pessoas comprarem os livros. 

Podemos fazer muita coisa. Até mesmo criarmos uma estatal que sirva como uma Petrobrás dos livros: editora, gráfica, rede de livrarias físicas e virtuais, rede federal de bibliotecas públicas com suporte para e-books e audiobooks, contratação de todos os profissionais em regime de serviço público… Podemos nos apropriar da nossa própria literatura e fazê-la florescer.

Sei que parece que eu descrevi uma utopia aqui, mas só falei algumas coisas baseadas em possibilidades reais. Talvez instituir isso seja uma luta política difícil, vai contra o interesse dos barões do agro e de uma porrada de gente poderosa. Mas um sistema público de saúde também era uma ideia contra o interesse de muita gente poderosa e, mesmo assim, nós fizemos o SUS acontecer.

O acesso aos livros é um direito. Devemos exigir esse direito. Então, da próxima vez que ler sobre pirataria, livros caros, ou tiver dor de cabeça para conseguir ler algo que você quer muito… lembre-se de que é um direito, e tudo isso pode ser mais fácil.

Bom, temos que nos organizar, né? Somos uma multidão, mas uma multidão só faz barulho quando grita junta. Do mesmo jeito que nos juntamos em defesa do livro quando quiseram aumentar o preço em 2020, devemos continuar a luta agora. 

E aí, o que acham de defender nossos livros?

fotografia de rosto de Ícaro de Brito. Ele é um homem negro de rosto redonto com barba e bigode curtos e cabelo encaracolado, está usando uma camiza xadrez vermelha.

Ícaro de Brito, serial reader, escritor de romance, fantasia e ficção cientifica, violinista amador, marxista-leninista, é idealizador do Guia para Estudar Escrita Criativa na Internet e psicólogo nas horas vagas. Escreve ocasionalmente no blog Rascunhos Abertos e tem dois contos publicados na Faísca, você pode ler um, e ouvir o outro no podcast Assovio.

Revisão: Mile Cantuária

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