Macunaíma e o Brasil de Mário de Andrade

Antes de ler, verifique se... Ai, que preguiça! Deixa pra lá.

Sério, se você não leu o texto do Roger publicado aqui na VAL meses atrás, pode parar de ler aqui e dá uma olhada lá. Quem ler o texto do Roger por último é a mulher do padre, mas, se ficar com preguiça, tá tudo bem.

Não foi exatamente o texto do Roger que me fez querer ler “Macunaíma”, do Mário de Andrade. Tampouco foi a escola. Infelizmente minhas professoras de literatura do ensino médio não foram muito eficientes em gerar interesse pela literatura. “Macunaíma” foi até matéria de prova, mas não li não. Ai, que preguiça! É que existe uma preocupação, da qual eu compartilho, de trazer mais brasilidade para a literatura — e esta preocupação traz uma pergunta: o que é brasilidade, afinal? Achei que o texto do Roger dá uma boa indicação: a esculhambação é brasileira!

E foi isso. Como eu me interesso muito por uma literatura que seja brasileira mesmo, cheguei à conclusão de que precisaria ler mais nossos clássicos. Primeiro porque aprendi estudando história que essa falsa brasilidade imposta (exemplo, os “patriotários”, gente que veste a camisa da seleção e acha que o Brasil se resume a um quartel do exército) não foi aceita pelo grosso da população já desde seu início, lá na época do Império Brasileiro que, na verdade, era português. Daí também li em “História da Literatura Brasileira”, do Nelson Werneck Sodré, que aquele período pós-proclamação da república seria o momento em que a literatura brasileira começou a ser brasileira mesmo (antes estaria sendo mais uma “literatura portuguesa feita na colônia”). Então, né? Os modernistas pareciam uma boa pedida para conhecer nossa tradição de meter brasilidade na literatura. Como eu gosto de fantasia, “Macunaíma” foi minha escolha óbvia.

Mas também devo dizer que não é um livro tão fácil de ler assim sem mais nem menos. Primeiramente, é preciso saber que essa história é esculhambada até o talo. Sério, o Pica-pau teria inveja do Macunaíma. Deadpool quebrando a quarta parede não chega nem perto. Então não fique calculando como ele consegue ir de São Paulo para Rio Grande do Sul e depois para Pernambuco em uma perseguição que dura menos de uma hora. Só aceite isso e se divirta. 

Segundamente, existe uma consideração sobre a linguagem. Mário de Andrade tenta misturar a língua escrita com a língua falada em várias regiões do Brasil lá em 1928. A ideia era aproximar o português escrito com os falantes, mas a mistura talvez não tenha dado tão certo assim. Pode ser difícil de entender. Uma boa dica seria ler em voz alta ou ouvir um audiolivro. 

Terceiramente, o livro esculhamba com a moralidade. Então você pode acabar se incomodando com o herói sem nenhum caráter, que é um indígena preto retinto que depois vira branco, ou talvez se incomodar com o comportamento sexual sem mediações (o que vai incluir cenas que podem ser interpretadas como estupro). Eu, com certeza, me incomodei muito com essas cenas.  Vale a discussão sobre elas (o que ficará para outro texto), mas eu recomendaria não se prender à literalidade e pensar o que significaria isso na grande alegoria que é Macunaíma.

E é assim que eu vejo a obra: uma metáfora para o Brasil. Isso com certeza não é novidade nenhuma para quem conhece a obra e já pesquisou os estudos acerca dela. Dizem que quando acusaram Mário de Andrade de ter plagiado contos populares e lendas indígenas, ele disse: “plagiei, sim, plagiei o Brasil”. E devo dizer que o Brasil retratado em Macunaíma é uma visão ótima, no geral. Inclusive, este livro merece ser leitura obrigatória para quem se interessa por brasilidade na literatura (mas se deu preguiça, talvez você esteja no caminho certo, eu mesmo só li quando quis).

Dá para começar com a alcunha de Macunaíma: “um herói sem nenhum caráter”. Isso pode ser visto pelo viés da esculhambação e da insurgência contra a moralidade dominante (algo bem carnavalesco, como diria o Roger). Muitas características vistas como negativas num geral são exaltadas em Macunaíma. Seu mote “ai que preguiça” não é uma crítica ao pecado capital. Na verdade, Macunaíma se livra de muita coisa ruim por ficar com preguiça. Para quê se render a uma dinâmica exploratória do trabalho como é nossa sociedade capitalista? Melhor ficar com preguiça mesmo! E qual é o sentido da repressão sexual que nossa sociedade cristianizada impõe? Para quê tanto mal-estar?

Outra coisa a ser dita sobre o “sem caráter” é o sentido de “sem características” mesmo. Afinal, existe uma identidade nacional brasileira? Mário de Andrade a via mais como uma não-identidade; acertadamente: O Brasil parecia uma colcha de retalhos. Somos brasileiros, mas não nos entendemos como uma nação. Essa ausência de uma identidade que nos une é o que define o que é ser brasileiro: um vazio, sem nenhum “caráter” mesmo. Ao longo da história, Macunaíma tenta ser muitas coisas, mas fracassa em tudo. Até a reconquista do Muiraquitã é bem menos gloriosa do que se esperava. E isso é o Brasil… A gente não conseguiu formar essa brasilidade enquanto identidade nacional. Ainda fracassamos em nos tornar uma nação, ao mesmo tempo que não existe mais um “antes” para voltarmos.

Esse sentimento de não ter lugar é algo que também acontece com Macunaíma. Ele nunca se sentiu bem em São Paulo, no mundo brasileiro civilizado. Mas nunca mais conseguiu voltar à sua existência primeira, lá no mítico Uraricoera. Tanto é que o final pretendido era uma apoteótica orgia no topo da Torre Eiffel. Mário de Andrade, sem conseguir esculhambar a Europa, acabou optando pelo final mais melancólico. Macunaíma fica com preguiça e só morre morrido mesmo. Até porque é muito ruim, né? Esse nosso sentimento de “não ser” e “não pertencer”. Uma agonia sem fim que nunca é aliviada.

O final do livro, inclusive, é a parte em que vou discordar de Mário de Andrade. Fazer Macunaima transcender para se tornar a Ursa Maior, por mais que tenha um simbolismo que combina com o resto da obra (porque porra, nem dá para ver a Ursa Maior daqui da América do Sul!), ainda é um final muito bonito para a feiura de viver nesse não lugar. Prefiro inclusive o final adaptado do filme “Macunaíma” de 1969, do diretor Joaquim Pedro de Andrade: Macunaíma é simplesmente morto pela Uiara e mancha o rio de sangue. Concordo com o diretor: se nós nos resignarmos a este tipo de existência, vamos ser engolidos pelo Brasil. Será nossa morte bem fracassada.

O interessante é que, apesar dessa ênfase na falta de caráter, encontramos em Macunaíma vários elementos que nos apontam um caminho para construirmos o nosso Brasil. O trecho que acredito melhor simbolizar isso é quando Macunaíma se torna branco. A ideia é tentar ser aceito em São Paulo, no Brasil civilizado. Primeiramente podemos observar que isso dá errado! Como diria Grande Otelo (que interpretou o Macunaíma negro no filme de 1969), “o Brasil pode até fingir que é branco, mas, na verdade, é negro” (link aqui). Negro e indígena, eu acrescento.

Essa civilização, essa identidade nacional que tentam nos impor desde que inventaram o Brasil, é uma coisa branca que nunca vai ser de verdade o Brasil. Os povos indígenas são quem sempre viveram neste território, e tudo foi construído com o braço negro (e com o cérebro também, pois os brancos escravizadores não se aproveitavam só da mão de obra, mas também da inventividade). Nossa raiz, bem longe do dito Brasil civilizado, é africana e indígena. E é ela quem vai nos ajudar a formar uma nação brasileira para o futuro.

fotografia de rosto de Ícaro de Brito. Ele é um homem negro de rosto redonto com barba e bigode curtos e cabelo encaracolado, está usando uma camiza xadrez vermelha.

Ícaro de Brito, serial reader, escritor de romance, fantasia e ficção cientifica, violinista amador, marxista-leninista, é idealizador do Guia para Estudar Escrita Criativa na Internet e psicólogo nas horas vagas. Escreve ocasionalmente no blog Rascunhos Abertos e tem dois contos publicados na Faísca, você pode ler um, e ouvir o outro no podcast Assovio.

Revisão: Luiz Felipe Sá

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