A literatura poderia ser mais carnavalesca

Antes de ler, verifique se a purpurina e a fantasia estão nos locais certos.

Quem me conhece sabe que minha festa favorita do ano é o Carnaval. Quer dizer, quatro dias de festas ininterruptas, e um feriado a mais apenas para curtir a ressaca? Não consigo pensar em nada melhor. Mas para quem não me conhece… meu primeiro texto publicado foi um conto de fantasia sobre o Carnaval chamado “Três Danças”, na primeira edição da Escambanáutica. Eu respiro Carnaval. Mas, no resto do ano, respiro literatura.

Sinto que a literatura, principalmente a escrita no Brasil, poderia ser mais carnavalesca. Não falo de histórias que se passam no Carnaval; eu falo de histórias que passam o sentimento de Carnaval. Toda a sensação caótica, carnavalesca mesmo, que essa festa costuma transmitir. Nunca me importei tanto com isso, mas na minha vida de leitor encontrei histórias que me passam esse sentimento, e sinto falta de não ser tão comum. Calma, me acompanhe, vou explicar o que estou querendo dizer.

Existe uma palavra que define todo o sentimento que quero passar: esculhambação. O Carnaval é aquela festa esculhambada: fantasias feias fazem sucesso, aquelas que você mistura roupas em casa, as mais exageradas possíveis, mistura estampa, coloca uma saia de paetê, enfia penas no corpo, se enche de purpurina; você vai numa lojinha qualquer de esquina e compra aquelas fantasias de vinte reais que vêm embaladas num saco plástico, que costumam ser apenas um arco de diabinho e uma gravata-borboleta bem vermelha; cada canto da cidade pode estar ou não em festa. O ar muda, cheiro de perfume doce se mistura com suor. É tudo muito exagerado, colorido, engraçado. Nada precisa de uma lógica, a intenção é chamar a atenção. Consegue entender aonde estou querendo chegar?

Li recentemente “O presidente pornô”, de Bruna Kalil Ohtero, e é um livro esculhambado, carnavalesco. É um romance hilário sobre um homem, ex-militar, que se torna presidente de um país fictício chamado Plazil, mas ele é um bosta que só quer saber de aproveitar o seu cargo e praticar seus fetiches. Uma sátira corrosiva sobre a história do Brasil — não a recente, mas desde o início da república. É uma história que emana essa aura, essa sensação de estar num Carnaval. Tanto pelo exagero das situações (em um capítulo específico, o debate político antes das eleições é feito em gincanas como tortas na cara, banhos em banheiras de sabão nos moldes da antiga banheira do Gugu, etc), tanto pelos constantes trocadilhos que se tornam uma piada constante, trazendo para a linguagem do livro uma repetição engraçada, exagerada, brega e, como uma boa fantasia de Carnaval, chamativa.

Sinto que todas as histórias desse tipo que li costumam não se importar tanto com uma lógica interna. Mesmo nas de fantasia, as coisas acontecem porque sim, porque são engraçadas e divertidas. Há uma certa necessidade de quebrar a lógica e chamar a atenção para si mesmo. “Macunaíma”, de Mário de Andrade, o primeiro que li que me trouxe essa sensação, tem seu personagem-título que nasce uma criança feia, que não fala até os seis anos de idade porque sempre que tentam fazê-lo falar, ele exclama: “ai! mas que preguiça!”. Em determinado ponto do livro, Macunaíma, de negro, vira branco. São coisas que fogem de uma lógica realista, servem para a sátira a ser feita, mas que são engraçadas por si só. No fim, a gente lê muito histórias que tentam ser realistas até dentro de sua fantasia, quando, ao ler, não estamos necessariamente procurando aquilo. Certas histórias constroem o direito de quebrar a lógica se através disso alcançarem um ponto muito alto do que estão tentando passar.

Como se usassem uma fantasia de cores que não faz sentido nenhum, brilhosa demais, lantejoulas e paetês e estampas, mas em que tudo combina para o motivo principal: chamar atenção para si mesma.

E é possível encontrar esse carnaval em outras histórias que fogem da comédia, ou seja, da tentativa de nos fazer rir. Li no último mês “A Feira do Troca-Troca onde um filhote de onça vale um rádio de pilha”, de Auryo Jotha, ficção científica anárquica, cuja história fala dessa feira extensa, caótica, próxima de um rio, onde é possível encontrar qualquer coisa para comprar e vender, e Zé deseja entrar e roubar a cabeça do seu namorado. É uma história caótica por si só, tanto pela ideia absurda quanto pelas misturas que Auryo faz durante sua narrativa veloz: de ficção científica a história passa para uma fantasia, tem toques de folclore e um quê de realidade, visto que a tal feira realmente existe (não da forma exagerada como descrita no conto, claro). É um conto vertiginoso onde há tantos elementos na história que ela simplesmente poderia ter qualquer coisa. Se em algum momento um OVNI aparecesse ali, ninguém poderia apontar e dizer “ah, mas isso não faz sentido”. Nada faz sentido, então tudo faz sentido.

Acho também que essas histórias têm a capacidade de contar sobre nossos próprios problemas, nossas questões, nossa identidade. Os três livros citados, para além dos exageros irrealistas e surrealismos que abraçam, são histórias muito brasileiras. Há toda uma maneira de contar sua trama intrínseca no texto, na estrutura, na forma narrativa; como o Carnaval, que veio de terras estrangeiras, mas só funciona do jeito que conhecemos em nossa própria nação.

No fim, penso que isso pode ser mais uma estética de exagero que necessariamente uma “literatura carnavalesca”. Gosto de tramas exageradas, de muitos elementos, do absurdo suprimindo o real. Gosto do Carnaval, das fantasias exageradas, da confusão de cores e gente, do absurdo de um país parar para curtir uma festa. A literatura pode ser qualquer coisa. Principalmente uma festa.

Foto de Roger Portela, um homem negro de pele clara com cabelo encaracolado até a altura do ombro/queixo, usando uma camisa social de manga curta e uma mochila, olhando para longe da câmera com os olhos semicerrados. O fundo parece ser uma árvore coberta de musgo.

R.R. Portela, morador do RJ, divide seu tempo entre seu trabalho, sua escrita e ser pai. Apaixonado por fantasia, você sempre vai encontrá-lo em mundos criados por ele ou por outros. Você pode acompanhá-lo no blog Cozinhando Mundos.

Revisão: Mile Cantuária

Lembre-se que a seção de comentários fica aberta, e adoraríamos ouvir suas opiniões sobre o artigo! Você conhece alguma obra carnavalesca para indicar?

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