A literatura nacional não é copinho de leite

Verifique antes de ler se os seus níveis de condescendência estão baixos. Espero que estejam nulos.

Quando eu era criança e juntava amigos para brincar, muitas vezes tinha que incluir minha irmã mais nova no grupo. O problema é que ela era nova demais para conseguir, de fato, seguir as regras da brincadeira. Por isso, combinávamos que ela seria “copinho de leite” (expressão encontrada ao longo do Brasil como “café com leite” ou “carta branca”). Ou seja: as regras da brincadeira não se aplicam a ela. Mesmo se ela for pega no pega-pega, nunca “estaria com ela”.

Pois bem, eu disse em outra ocasião que ler e gostar de livros nacionais é um ato de resistência. Ainda mantenho minha posição, só que gostar incondicionalmente de livros nacionais e só elogiá-los é tratá-los como “copinho de leite”, excluí-los da brincadeira real e só iludi-los com uma atenção que você nem está dando de verdade. 

Veja, o sistema do copinho de leite diminuía a frustração da minha irmã, afinal, ela não tinha chances de perder. O problema é que, sendo copinho de leite, também nunca iria vencer. Ela não estava brincando de verdade — e todas as crianças passam pelo momento de perceber isso e não aceitar mais serem copinho de leite.

Acredito que a literatura nacional já esteja nesta fase: não aceitar mais ser copinho de leite. Queremos que os livros nacionais sejam levados a sério, então é preciso brincar de verdade.

Mas sabemos que essa brincadeira é difícil, não é? Lembro-me da primeira resenha de livro nacional que escrevi. Foi de “Viajantes do abismo”, da Nikelen Witter. Eu estava ainda me conscientizando de que ler livros nacionais é um ato de resistência e queria que mais gente lesse. Foi uma resenha super elogiosa… mas também foi mentirosa. Eu não gostei tanto daquele livro, mas me esforcei demais para tentar gostar, daí maquiei a resenha o máximo que deu. 

Não vem ao caso os problemas de “Viajantes do abismo”, porque hoje não é dia de resenha. O ponto é…

Conheço muita gente que faz o mesmo. Sendo justo, algumas pessoas até admitem para si mesmas que leram um livro nacional ruim, mas daí optam por não comentar nada. Existe um medo de que, caso circule uma crítica negativa ao livro nacional, todo mundo vai cair na ideia de que “livros nacionais não prestam”, porque o mercado de livros gringo é mais forte. Também existe a impressão de que o ambiente literário brasileiro seja um “ovo”, daí alguém pode interpretar sua crítica negativa como ataque e contra-atacar. No final, temos feito isso: deixado a literatura nacional como copinho de leite, um lugar onde ela nunca poderia perder, isenta de críticas.

Isso não poderia ser mais prejudicial, pois, como eu disse anteriormente, nesse lugar também não é possível vencer.

A brincadeira da literatura inclui a crítica negativa. Sim, às vezes (sempre) livros tem problemas. Nós não gostamos de tudo. Daí dizemos o que não gostamos e o porquê e compartilhamos essas impressões com outras pessoas.

Lembro-me de quando saiu a série “Legado Folclórico”, do Felipe Castilho. Eram livros infantojuvenis que se propunham a serem o “Percy Jackson brasileiro” e esse elevator pitch até que funcionou para impulsionar as vendas. Quando li os dois primeiros livros, carreguei comigo as expectativas de muitos elogios e críticas positivas — assim como quase todo livro nacional que li nos últimos anos. É uma história bem legal, mas tinha alguma coisa ali me incomodando e, na época, eu não sabia nomear. 

Foi quando algumas pessoas resolveram parar de tratar literatura nacional como copinho de leite e fizeram as primeiras críticas negativas que li. Descobri exatamente o que incomodava: na tentativa de valorizar uma cultura popular brasileira, o Felipe Castilho, na tradição que se consolidou principalmente pelas obras de Monteiro Lobato, se valeu da retórica colonial de esvaziar as lendas de seu sentido original, um sentido sagrado que é importante para muitos povos indígenas vivos. Isso suscitou muitas discussões sobre qual é o lugar do folclore na cultura brasileira e sobre a valorização da luta dos povos originários por existência e reconhecimento.

Resultado: anos mais tarde, outro autor começou a publicar histórias de fantasia brasileira que também levam em conta o folclore, mas, dessa vez, identificando-os nas histórias de tradição popular e não nas apropriações racistas popularizadas por Monteiro Lobato. Primeiro, Thiago Lee publicou “Quatro cabras da peste e um segredo”, na Revista Mafagafo. O conto teve uma boa recepção, e então ele publicou “A maldição do carneiro de ouro”, um infantojuvenil que conseguiu superar “Legado folclórico” em qualidade e reconhecimento e foi republicado pela Editora Rocco. 

Das impressões compartilhadas surgem alguns consensos, e esses consensos são levados em conta por escritores ao escreverem seus livros. Além disso, com o amadurecimento da leitura, os leitores se tornam cada vez mais conscientes daquilo que faz a literatura ser melhor ou pior, daquilo que o faz gostar mais ou menos de uma obra. 

Como alguém que ama a literatura nacional, eu odiaria privá-la desse aspecto. É por isso que, quando leio algum livro nacional ruim, não tenho medo de dizer que ele é ruim. Longe de ser um ataque, essa atitude inicia uma conversa: por que percebi esse livro como ruim? O que poderíamos melhorar? É a brincadeira da literatura em sua plena forma!

A literatura nacional não é copinho de leite. Então vamos brincar direito e, começando agora, qual livro nacional você leu e não gostou?

fotografia de rosto de Ícaro de Brito. Ele é um homem negro de rosto redonto com barba e bigode curtos e cabelo encaracolado, está usando uma camiza xadrez vermelha.

Ícaro de Brito, serial reader, escritor de romance, fantasia e ficção cientifica, violinista amador, marxista-leninista, é idealizador do Guia para Estudar Escrita Criativa na Internet e psicólogo nas horas vagas. Escreve ocasionalmente no blog Rascunhos Abertos e tem dois contos publicados na Faísca, você pode ler um, e ouvir o outro no podcast Assovio.

Revisão: Denize Gaspar

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