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A leitura perdida entre o escapismo e a alienação
Antes de ler, verifique se você não está confundindo a necessidade de descanso com racismo.
Tendo uma posição aberta de defesa de obras nacionais, é de se esperar que eu fique feliz com a notícia de que um livro brasileiro ganhou adaptação audiovisual em um streaming com milhares de acessos. Mas, a verdade, é que eu fiquei inconformado quando o filme “Perdida”, inspirado no livro homônimo da escritora Carina Rissi, foi lançado na Disney+.
Eu não li nem o livro e nem assisti ao filme (nem li e nem lerei, e recomendo a todo mundo que não perca seu tempo) — o que, para algumas pessoas, já poderia invalidar qualquer comentário que eu tenha a fazer. Mas, assim como eu não preciso assistir “O Nascimento de uma Nação” para odiar um filme que exalta a Ku Klux Klan, não preciso ler “Perdida” para ter ojeriza a um livro que utiliza uma abordagem que é, em última instância, racista.
“Perdida” é algo como um romance de época adolescente, em que uma garota da atualidade volta no tempo para viver no Brasil de 1830 e é acolhida pela família Clarke, que seriam “barões do café”, algo que no Brasil tentou se assemelhar a uma aristocracia europeia. E mesmo com todo o cenário do livro girando em torno de grandes cafeicultores em pleno século XIX, a escravidão no Brasil não foi citada ou representada, revelando um apagamento da história do povo negro brasileiro.
Em entrevistas, Carina Rissi se defendeu dizendo que não foi um apagamento. Segundo ela, a ideia era pessoas brancas e negras convivendo em harmonia, mas como ela não colocou descrições físicas, alegou que “automaticamente o racismo estrutural leva as pessoas a pensar que é uma pessoa branca se você não a descreve de outra maneira”. Sobre a escravidão omitida, ela disse que esse fato “Além de hediondo, é muito vergonhoso para nossa história. E, como no mundo do faz de conta tudo é possível, eu simplesmente decidi que a escravidão nunca aconteceu” (você pode ler estas declarações aqui.)
Eu compreendo de verdade o desejo de descansar das coisas ruins do nosso mundo. A realidade é brutal e, muitas vezes, desesperadora. Olhar para ela o tempo inteiro cansa. Como uma pessoa negra, não quero pensar em racismo o tempo inteiro, mesmo ele sendo real. Então, às vezes, eu esqueço. Escapo para um mundo de imaginação onde racismo não chegou a existir. É bom, legal e gostoso (a Ana até publicou um texto aqui na VAL sobre esse sentimento). Eu diria que essas pausas da realidade até nos ajudam a lidar com ela, pois nos permitem descansar um pouco a cabeça. E, pelo menos por este texto, vou chamar essas pausas necessárias da realidade de “escapismo”. Daí sou super a favor do escapismo. Inclusive, precisamos escapar mais vezes, recomendem-me leituras escapistas!
Entretanto, vamos imaginar o seguinte: digamos que exista alguém entusiasta dos avanços científicos ocorridos entre as décadas de 1930-1950 e queira escrever uma história escapista bem humorada, talvez até com um romance. Daí a pessoa vai escolher esse período citado. O problema que essa pessoa vai encontrar ao escrever a história é um evento chamado Segunda Guerra Mundial, em que uma ideologia chamada Nazifascismo levou a um grande genocídio (fora as outras coisas terríveis que acontecem em guerras). A solução que essa pessoa adotaria seria, então, fingir que a guerra nunca aconteceu, mas só a guerra. A pessoa manteria todo o resto inalterado: e a existência da Alemanha Nazista sob o comando de Adolf Hitler. Pode até ter pessoas judias ali no cenário para provar que não existiria o Holocausto, mas a protagonista seria uma pessoa branca e se apaixonaria por um simpático rapaz ariano da juventude hitlerista. Essa história, com essas adaptações, seria suficiente para você escapar da brutalidade que foi o nazifascismo?
Não seria o suficiente para mim.
Mesmo se, nesse mundo alternativo em que não houve o Holocausto, o filho do Adolf Hitler tivesse um melhor amigo judeu, essa história não funcionaria enquanto fossem mantidos certos elementos: partido nazista, noção de raça ariana, eugenia, imperialismo, pesquisa bélica militar testada em colônias na África... Todas essas coisas estão tão intrinsecamente interligadas que não é possível apagar um elemento e manter o outro. Não funciona. Um nazista é um nazista, seja nesse mundo ou em qualquer outro.
O único jeito de isso funcionar para alguém é desconhecer completamente o que foi o Nazifascismo, o Holocausto, ou como toda aquela tragédia foi acontecer. Ou seja, para alguém sentir que consegue “escapar” nesse caso, precisa ter se alienado de toda a história.
Claro que se você for uma pessoa branca, não afetada por nada que remeta à ideologia nazista, pode ser mais fácil lidar com a ideia de um Hitler bonzinho — o que, inclusive, é perigoso: o fato de alguém não ser ameaçador para você, não significa que não seja ameaçador para uma série de outras pessoas. Devemos nos atentar para a dor de outros para além da nossa.
Isso não é escapismo, é alienação. Isso não te faz descansar da realidade, mas te impede de enxergá-la. Se você não puder apreender a realidade como ela é, como poderá intervir nas situações brutais e transformá-las? A alienação só nos deixa mais passivos. É uma forma de nos violentar.
Voltando para a nossa tentativa falha de fazer um romance de época leve no Brasil de 1830… Para existir Brasil, precisou existir a colonização portuguesa nas Américas. Essa empresa colonizadora foi justamente a que impulsionou a empresa escravagista que assolou a África por mais de 400 anos. Tivemos muitos ciclos de produção neste território: o ciclo da cana-de-açúcar, o ciclo do ouro, e a história se passa no período em que estava se estabelecendo o ciclo do café. Em todos esses ciclos, temos o comércio tricontinental: se produz na América a partir da mão de obra da África e se enriquece na Europa.
Claro que a história das pessoas negras no Brasil não é só tragédia. Existiram revolta e resistência durante todo o período escravista. Inclusive, já existiam movimentos de independência e movimentos abolicionistas estourando nas Américas em 1830 (década na qual se passa “Perdida”), e mesmo que muitos desses movimentos fossem protagonizados por pessoas negras e indígenas, não podemos dizer que a situação colonial escravista tinha sido superada. Isso ainda demoraria, tanto é que vinte anos depois, em 1850, com a proibição do tráfico de escravos no Brasil pela Lei Eusébio de Queiroz, ainda tivemos toda a sociedade brasileira se empenhando para manter a ordem escravista. E daí me chama a atenção a escolha da autora de focar numa família de barões do café, já que alguns dos mais bem sucedidos barões do café adquiriram toda sua riqueza na base do tráfico negreiro ilegal (esse foi o maior caso de corrupção da história do Brasil. Para saber mais, recomendo ouvir o podcast Projeto Querino).
Em suma, não tem como existir aquela aristocracia brasileira idealizada em “Perdida” sem a escravidão, sem a expropriação de terras indígenas, sem a exploração de dois continentes por parte da Europa. Não há como existir sociedade brasileira no século XIX da forma como é apresentada na ideia de “Perdida” sem esse ethos escravista e racista. Esse livro não nos ajuda a escapar de realidade nenhuma. Apenas apaga os elementos constitutivos daquele fato “hediondo e vergonhoso”, nos alienando de mais possibilidades de enfrentamento.
Infelizmente, devo concluir admitindo que sei que algumas pessoas brancas, muito confortáveis com a posição social que esse racismo estrutural estruturou para elas, sabem disso tudo e reclamam para si o direito de se alienar de tudo isso. Para elas, basta fazer algumas pequenas concessões para todos nós que não somos brancos, como se dissessem: “tomem aqui a migalha de representatividade de vocês e nos deixem em paz”. Para elas, a alienação descansa. Para elas, seria melhor mesmo um mundo onde pessoas negras não existissem para não incomodar sua consciência com culpa.
Mas nós existimos. Nós nos lembramos do passado e entendemos como isso nos trouxe ao presente momento. Nós queremos um futuro diferente e, por isso, aprendemos a identificar o rosto dos nossos inimigos, aqueles que não querem que as coisas mudem. Mesmo que este rosto pareça o de um príncipe encantado para alguns, para nós ele representa tudo aquilo contra o qual lutamos.
Ícaro de Brito, serial reader, escritor de romance, fantasia e ficção cientifica, violinista amador, marxista-leninista, é idealizador do Guia para Estudar Escrita Criativa na Internet e psicólogo nas horas vagas. Escreve ocasionalmente no blog Rascunhos Abertos e tem dois contos publicados na Faísca, você pode ler um, e ouvir o outro no podcast Assovio. |
Revisão: Denize Gaspar
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