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Olhar diretamente para o Sol
Antes de ler, verifique a temperatura de fusão das suas asas de cera.
Ao longo da vida, eu tive fases de ler o primeiro livro que me chamasse a atenção na biblioteca da escola, e fases de buscar leituras específicas. Eu não lembro a ordem, mas teve uma fase de mitologia grega e uma de fábulas. Foram curtas, a biblioteca da escola tinha no máximo quatro livros de cada. Na quinta série, teve uma fase de vampiros que incluiu Darren Shan e um livrinho adorável sobre um tal Conde Krinkodemo. Na oitava série, teve uma fase de pagar de gênio maligno e ler livros que um gênio maligno leria — essa é a história de como eu li Maquiavel. Também teve uma fase de vampiros com os livros da Anne Rice. No colegial, teve a fase de ler um livro a mais de cada autor ou escola literária além do que estava na lista do vestibular, e teve a terceira fase de vampiros, que envolveu “Crepúsculo” e “Diários do Vampiro”.
Em cada uma dessas fases, eu tive amigos para me acompanhar, mas agora, adulta, eu sou forçada a constatar uma realidade triste: a maioria dos meus amigos não abandonou “romance de vampiros” ou “Harry Potter” ou “livros da Meg Cabot”. Eles abandonaram a ficção especulativa, a ficção em geral, ou até a leitura.
Parte do problema é a vida adulta. Muitas preocupações competindo pelo nosso tempo, é normal não ter cabeça para ler tanto. Mas quando tentei apresentar a eles a magia das ficções curtas, eles não se impressionaram. Quando descobriram sozinhos a magia dos audiolivros, eles não se voltaram para a ficção. E eu fiquei tentando entender por quê.
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Existe um preconceito contra a ficção especulativa. Minhas tias são todas mulheres inteligentes. Elas estudaram, sempre foram de ler bastante — o Maquiavel que li na oitava série peguei emprestado delas — e se informar e se politizar. Mas quando elas leem o que eu escrevo é sempre um olhar meio vidrado, um sorriso plástico, que você vê que elas querem me apoiar na escrita, mas “essas coisas de magia são muito pra minha cabeça”. Gente, eu não sou o Brandon Sanderson. Eu não crio “sistemas de magia” que você tem que entender as regras e interações entre os elementos diferentes. Eu escrevo DR entre mãe e filho, depressão pós-término de relacionamento, crush não correspondido. Mas é como o Kazuo Ishiguro disse:
“Você não pode colocar um dragão que eles começam a te chamar de escritor de fantasia.”
No contexto em que o Ishiguro disse a frase, soou como se ele considerasse ser escritor de fantasia uma coisa ruim, mas eu entendo o que ele disse.
Comecei a participar do clube do livro do meu trabalho. Normalmente eles leem contos e textos curtos, e uma vez comentei que eu escrevia. Me pediram um conto, e na semana seguinte discutimos o “Diário de Quarentena do Viajante do Tempo”. Naquele dia, uma leitora olhou na minha cara e disse que a máquina do tempo não era real, e que o protagonista estava alucinando por causa do isolamento social. Eu tive que respirar bem fundo e lembrar que o leitor tem direito a um lugar seguro para discutir a sua interpretação do livro sem a autora voar no pescoço dele e esganar.
Outra perguntou “Não fica ofendida, mas você acha que tem dificuldade de encarar a realidade?”. Na hora eu não fiquei ofendida, porque considerei uma oportunidade maravilhosa de falar sobre como a ficção permite trabalhar de forma mais livre temas que às vezes são pesados ou delicados, mas hoje, no contexto de outras discussões que surgiram naquele clube do livro, eu fico ofendida retroativamente.
E quer saber? Eu tenho dificuldade de encarar a realidade sim.
Olhar para a realidade é como encarar o sol. Eu não sou ignorante sobre a realidade, mas eu tenho que desligá-la em algum nível se eu quiser continuar minha vida de forma minimamente funcional. Todos nós temos. A verdade é que qualquer um de nós pode morrer a qualquer segundo. Aviões caem. Assaltos acontecem. Feridas infeccionam. Algum dia você, ou uma pessoa muito querida pra você, pode sair por aquela porta e nunca mais voltar, e você precisa pagar dinheiro para ser enterrado. No dia a dia, você joga essa informação no fundo da mente sob a categoria “possível, porém improvável” e segue a vida, mas às vezes algo ruim acontece, e esses pensamentos ficam flutuando pela superfície na forma de trauma — os relatos das pessoas que passaram meses fazendo o caminho mais longo depois de serem assaltadas no seu trajeto uma vez, estar no enterro de um conhecido e pensar que por muito pouco poderia ser o enterro de um amigo.
Então, quando eu escrevo sobre pessoas fictícias passando fome fictícia, é porque eu não consigo olhar pessoas reais passando fome real e escrever um livro sobre isso. Quando eu vejo pessoas reais passando fome real, eu tenho algumas escolhas: deixar com elas todo o dinheiro vivo que esteja na minha carteira, pagar uma refeição no cartão ou, se nada disso for possível, passar algumas horas me sentindo horrível por viver num mundo onde pessoas estão passando fome e eu não posso fazer nada pra ajudar, até a necessidade de seguir com a vida me forçar a empurrar essa informação lá para o fundo. Só de lembrar que tem pessoas reais passando fome real eu fico aflita, abro minha planilha de finanças e vejo se não tem como eu contribuir com alguma ONG.
Para mim, é inconcebível ver um ser humano real passando fome e ter uma discussão filosófica sobre isso. E se para essas pessoas que gostam de literatura “mais realista” o relato de um ser humano — talvez não real, mas baseado em seres humanos reais que moram no seu país, na sua cidade — passando fome não provoca um desconforto visceral, então elas têm menos noção do calor do sol batendo nas costas do que eu, que não consigo olhar pra ele. Na cabeça delas, essas pessoas existem menos do que os meus dragões para mim, e eu não consigo pensar em nada mais (filosoficamente) violento com um ser humano do que achar que ele não existe.
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Acho que meus amigos que ficaram para trás e pararam de ler ficção nunca olharam para ela pela mesma lente que eu. Para eles, essas “coisas que não existem” ficaram no passado, e alguns olham com desdém para adultos que ficam lendo livros de fantasia.
Eu? Eu não consigo olhar direto para o sol. Eu olho termômetros, faço teatros de sombras, navego pelas estrelas e uso lentes focais de ficção para concentrar a luz solar num único ponto.
Com sorte, vou causar um incêndio.
Ana Carolina Dantas é física nuclear e escreve histórias de fantasia e ficção cinetífica focadas em relacionamentos interpessoais. Ela tem alguns contos na Amazon e publica na sua newsletter uma história de vampiros. Ana gosta de RPG, assiste One Piece enquanto lava louça e aparentemente é editora-chefe da VAL (ela nega as acusações). |
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