Uma dieta de homens e lágrimas

Antes de ler, verifique onde está projetando suas fantasias de poder.

Do lado direito da imagem há três círculos de borda azul conectatos. Um tem a ilustração de uma muher de vestido medieval azul, com um chapéu bicorne, detalhe da capa do livro Uma Ideia Toda Azul. O círculo do meio, maior, tem uma mulher branca de cabelo liso usando terno, um frame do clipe da música Brakfast. E o último círculo tem um recorte da capa do livro Assistente do Vilão, mostrando essencialmente o título. No restante da imagem vemos um colar de pérolas contra um fundo azul, e o texto: Paralelos: uma ideia toda azul // breakfast // Assistente do vilão

Eu prefiro escrever resenhas de livros que li há pelo menos alguns meses. Isso garante que o modo surto total já tenha passado, e me deixa filtrar o que realmente me marcou sobre uma leitura.

O modo surto inclui chegar no clube do livro gritando “AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA”. É muito divertido, mas às vezes assusta as pessoas.

E acho que, se você ainda está pensando em um livro depois de quinze anos, ele foi marcante o suficiente.

Ou você pode só nunca mais ter lido outro livro na vida, igual aos fãs de uma certa franquia aí... cof cof...

Um conto da Marina Colasanti chamado “Uma Ideia Toda Azul” mora na minha cabeça sem pagar aluguel desde que eu tinha dez anos, e me motivou a ler na adolescência a antologia de mesmo nome com outros contos da autora.

Todas as histórias tinham esse ar de contos de fadas sinistros, e duas delas ficaram comigo depois desses aproximadamente quinze anos. Em particular, uma delas voltou com tudo quando ouvi a música “Breakfast”, da Dove Cameron:

“I eat boys like you for breakfast

One by one hung on my necklace

And they'll always be mine

It makes me feel alive”

Numa tradução muito, mas muito livre, porque literal ficaria tosco:

“Eu devoro caras como você no café da manhã

E penduro um por um no meu colar

Vão ser meus pra sempre

Isso me faz sentir viva”

E essa é exatamente a trama do conto da Marina Colasanti: uma princesa não está feliz em ser apenas a princesa e a mulher mais bela do reino. Ela quer algo que a deixe ainda mais bela. Por isso, aprende bruxaria e, um a um, transforma os pretendentes em pedras para o seu colar (até que um príncipe menos idiota que os outros vem e salva os príncipes indefesos).

Hoje, depois de todos esses anos, a música me fez lembrar do conto, e também analisar ele sob uma ótica diferente.

Há quinze anos, eu já tinha achado interessante que a princesa ERA a bruxa má. E, como ela já era rica e bonita, querer aprender magia e usar pra transformar homens em um acessório muito fashion era claramente um sinal de maldade. Ela é má porque ela é má, sem passado triste. As pessoas são assim às vezes.

Até que a música recontextualizou o conto na ótica da fantasia de poder feminina.

“Ooh-ooh, so you wanna talk about power?

Ooh-ooh, let me show you power”

“Oh, você que falar sobre poder?

Oh, eu vou te mostrar o poder”

Conheci a música “Breakfast” numa playlist para o livro “Assistente do vilão”, acompanhada de uma dezena de outras faixas sobre mulheres sendo más e sobre como bad boys são mais legais. O livro é adorável. Levinho ao ponto de às vezes ser bobo, absolutamente hilário, com direito a um casalzinho idiota demais para perceber que estão apaixonados, recomendo.

Mas em “Assistente do vilão” quem “canaliza a maldade” é (surpresa) o Vilão. A protagonista, Evie, é uma moça boazinha. Claro, ela consegue sangue frio o suficiente para ignorar o perigo e a violência do trabalho do vilão, e às vezes ela diz que ela mesma faria as maldades, se precisasse... mas ao longo do livro as ações dela são sempre de consertar, conciliar, salvar.

Considerando que o livro 2 já foi lançado, e se chama “Aprendiz do Vilão”, não é spoiler se eu disser que isso só vai mudar no fim do livro, quando o último evento dramático da trama acontece e leva a Evie a chutar o balde, decidindo ser malvada também.

Num post sobre mocinhos de romantasia, a Fernanda Castro pega pra defender o boy lixo do tropo “eu destruiria o mundo por você”:

Penso que destruir é mais fácil que construir quando se é homem (branco, cis, hétero… vocês me entenderam). Mulheres nunca tiveram a prerrogativa da destruição. Elas cuidam, nutrem, educam, maternam, agregam, acolhem, perdoam. Victor Hugo dizia que Deus fez para o homem um trono, e, para a mulher, um altar.

A mulher que destrói é pária mesmo entre as suas, pois agiu como homem. É pária até para si mesma, pois foi ensinada a sentir uma culpa tremenda por qualquer vestígio de egoísmo. (...)

Se engana quem pensa que a romantasia está aí só para preencher fantasias sexuais. As coisas são muito mais interdependentes. A promessa de destruição é uma fantasia de poder.

Inserido no mocinho, o potencial destrutivo a isenta de culpa. Ela não é a agente causadora da destruição, mas o poder é dela. Está por um fio. Está por sua decisão. Está ao alcance.

Aqui eu retorno ao conto de fadas bizarro da Marina Colasanti, porque a princesa que não estava satisfeita em ter um trono e em ser a mais bela é um exemplo ao vivo e a cores de como a ambição é “uma virtude nos homens e um defeito nas mulheres”. Ela nem sequer precisa de um boy lixo para destruir as coisas por ela, ela faz as próprias maldades. E é punida por isso.

Veja bem: não estou dizendo que a Marina Colasanti “escreveu um conto moralizante”, “reforçou expectativas/estereótipos de gênero”, etc. Tudo bem que faz quinze anos, mas eu me lembro de ser uma história meio neutra: as ações estão sendo apenas narradas, e o leitor que tire as próprias conclusões. Pois bem. Eu estou há quinze anos tirando minhas próprias conclusões, se isso não é uma história bem escrita, eu não sei o que é.

Na vida real, eu acho que a gente deveria explorar todas as opções de diálogo, acolhimento, aceitação, desescalação de conflito possíveis. Mas eu também percebo que, na escala doméstica, esse trabalho cai muito desigualmente sobre as mulheres. E, da mesma forma que isso vira um trabalho de Atlas tentando segurar a abóbada do mundo para elas, os homens também são prejudicados por isso. Um colega de trabalho me disse:

Eu NUNCA vou chegar em um amigo e dizer: “cara, estou passando por um momento difícil e estou meio pra baixo. Será que você pode me fazer um pouco de companhia?” Em vez disso, eu vou fazer uma piada autodepreciativa, e quem é meu amigo mesmo vai perguntar se tá tudo bem.

Puxa, pelo menos uma vez por mês eu digo para o meu irmão “estou pra baixo, preciso fazer faxina, quer vir aqui? Você nem precisa limpar, é só pra me fazer companhia mesmo”. E ele vem (e eu ponho ele para me ajudar a limpar) e isso me faz tão bem!

Então é isso: na vida real a gente precisa de soluções construtivas, mas na ficção a gente pode projetar fantasias de poder perigosíssimas tipo “e se só uma mísera vez eu pudesse ser ruim? Quebrar coisas, chutar cachorrinhos, e não ter que ser a confidente atenciosa da pessoa que vem chorando os seus problemas.”

Talvez se eu relesse esse conto hoje eu torcesse pela princesa bruxa que pendura homens no seu colar.

Fotografia de Ana Carorina Dantas, uma mulher branca de cabelo joãozinho, usando óculos retangulares. Ela tem sobrancelhas grossas e uma trança fininha caindo sobre o ombro.

Ana Carolina Dantas é física nuclear e escreve histórias de fantasia e ficção científica focadas em relacionamentos interpessoais. Ela tem alguns contos na Amazon e publica na sua newsletter uma história de vampiros. Ana gosta de RPG, assiste One Piece enquanto lava louça e aparentemente é editora-chefe da VAL (ela nega as acusações).

Revisão: Davi Dallariva

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