Um jogo de búzio-futuro: resenha de “A Imortal”, de Sabine Mendes

Antes de ler, verifique se quem narra está inventando um passado ou um futuro.

Banner de divulgação da resenha do livro “O imortal”. À direita, a montagem de um tablet com a imagem colorida do livro “O imortal” na tela. O título do livro está na parte superior da capa, em caixa alta e letras pretas, e logo abaixo a ilustração em retrato do Machado de Assis, um homem negro usando terno, gravata, cabelos, barba e bigode brancos. À direita, o título do texto “Um jogo de búzio-futuro: resenha de ‘A imortal’, de Sabine Mendes” e abaixo do texto a foto colorida de Yuri Cortez olhando para a câmera, em formato redondo. Yuri Cortez é uma pessoa branca de rosto redondo, cabelo castanho e comprido, olhos castanhos, usando óculos de grau retangulares refletindo a luz do sol e uma camiseta preta.

A série “Releituras Afrofuturistas” da Kitembo Edições se propõe, segundo seu texto de apresentação, a “conectar o leitor com as grandes obras de autores negros e negras de todos os tempos, por meio de uma abordagem afrofuturista”. O volume 1 da coleção apresenta assim a dobradinha “O Imortal”, de Machado de Assis, e “A Imortal”, contraparte afrofuturista de Sabine Mendes.

Como espécie de subtítulo de “A Imortal”, consta que o texto foi livremente inspirado no conto “O Imortal” de Machado de Assis. A leitura das duas histórias, porém, revela um processo de construção de paralelismos bastante deliberados, tanto na forma quanto no conteúdo. O conto de Sabine, mais do que inspirado no conto de Machado, é uma recontagem explícita: a forma dos capítulos, inclusive em muitas escolhas de palavras, imita ou emula a do conto de Machado; os lances principais do enredo original são os mesmos, só que agora sob a perspectiva de uma nova personagem; o recurso narrativo de ter um filho da pessoa imortal narrando sua vida se repete; e há mesmo um momento de “A Imortal” em que Sabine inventa as circunstâncias em que o conto original de Machado teria sido concebido — sendo o próprio Bruxo do Cosme Velho uma das personagens.

Li, não me lembro onde, que um dos méritos das grandes obras literárias é que elas vão nos ensinando, conforme as lemos, como elas devem ser lidas. Me pareceu, durante a leitura, que parte da proposta do conto de Sabine é, por sua vez, nos ensinar a ler o conto de Machado de Assis. Os lances da história que no conto de Machado são ambíguos, implícitos, incertos, no conto de Sabine são trazidos à luz. Em Machado, por exemplo, já desde os primeiros capítulos, o narrador, Dr. Leão, dá mostras de que não se pode confiar plenamente em suas palavras, ainda que de forma vaga — omite os motivos da vinda dos avós ao Brasil, pinta com muita força as cores do patriotismo e catolicismo do pai, logo depois de narrar como acolheu bem os invasores holandeses e abandonou uma ordem religiosa… Já a autoridade de Niara, a narradora concebida por Sabine, é estabelecida moralmente e factualmente desde o começo da história: não acreditam nela os turistas, que saem de fininho emporcalhando a praia, mas dois “crias” do local querem ouvir sua história; além disso, Niara endireitou a coluna da centenária Dona Mirtes, e desde então se tornou autoridade respeitada na vila de Praia Boa.  

A escolha de retomar, em alguns momentos até o nível da frase ou da palavra, as estruturas do conto de Machado também é outra coisa que, em minha opinião, contribuiu para ajudar quem lê a perceber de que forma ele constrói sua narrativa. Tenho a impressão, ainda, que a lição mais importante para se ler Machado é aprender a desconfiar de seus (quase sempre charmosos) narradores; e acho que esse é o grande efeito da cena em que se encontram, no último capítulo do conto de Sabine, Mama Amani, Rui de Leão e o próprio Bruxo.    

Aparte os efeitos pedagógicos, fiquei com a impressão também de que a escolha de Sabine por estruturar sua história de forma tão paralelística acabou exacerbando o contraste entre a “pena da galhofa” e o “búzio-futuro”. Naturalmente, este é um contraste de perspectiva literária inevitável entre um autor do que se convém chamar Realismo e uma autora escrevendo para uma coleção deliberadamente Afrofuturista — mas acho notável que esse choque de concepções já tenha sido escolhido como forma de abrir a coleção!

Um  exemplo disso é a forma como a ciência entra nos contos: em “O Imortal”, a menção às propriedades químicas do elixir, e o desejo expressado por Rui de Leão por vê-lo analisado em laboratório, é mero pretexto para desenhar mais um aspecto de seu caráter de homem que adia projetos ou anuncia intenções que não pretende cumprir. Mais emblemática ainda é a homeopatia, que se usa não só para caracterizar o narrador como para colocar, ao final, as intenções de sua narrativa em dúvida. Em “A Imortal”, a narradora se preocupa em explicar o funcionamento e a aparência do ambiente tecno-mágico que é o reino do Íròkò, domínio do Senhor do Tempo, onde Amani cresceu; descreve as propriedades dos búzios-futuros, e a forma como eles permitem aos protegidos do Senhor do Tempo acessar o mundo “lá-fora” como imortais. E se a tecnologia põe em cheque as intenções do Dr. Leão, ela confirma a sinceridade de Niara.

A linhagem das personagens é outro destes campos em que o contraste é mais visível: Amani é “uma autêntica palmarina”, filha de um pai que morreu em combate contra as forças dos escravistas imperiais e uma mãe cujas sabedoria e determinação garantiram a salvação de si, de sua filha, e de vários membros de sua comunidade. Essa linhagem informa as ações de Amani ao longo de todo o conto; mesmo em seus momentos de crise, é orientada por sua missão, e pelo desejo de lutar, de diferentes formas, contra a exploração, a escravidão, e outras injustiças — sua escolha mesmo pela imortalidade foi movida por seu desejo de ajudar os seus. Rui, por sua vez, é filho de pais que vêm ao Brasil “por motivos que não vem ao caso dizer”, apesar de sua origem supostamente nobre, indo ainda o pai, ao fim da vida, se refugiar na “herege” Holanda. Junte-se a isso suas relações em Haia e sua imortalidade para que ele evoque a figura do Judeu Errante. Mas ainda também foi doppelganger de conde inglês, frade franciscano, habitante de aldeia indígena, revolucionário na França e deputado no Brasil — seu princípio, calcado nessa identidade sempre incerta e dissimulada, era justamente de que o melhor jeito de passar a eternidade era “variá-la”.

Em Machado de Assis, no fim das contas, no seu Realismo a seu jeito, o tema da imortalidade serve para explorar os extremos de indiferença e tédio a que se sujeitam aqueles que têm o privilégio de não sofrer ansiedades relativas à própria sobrevivência (ou, talvez, os extremos a que chegam os homeopatas para vender sua ciência). Em Sabine Mendes, pelo menos nesta sua versão Afrofuturista, a imortalidade serve para representar figurativamente a longa história de resistência das pessoas negras e indígenas ao jugo da escravidão e a outras violências a que a branquitude e o capital tentam submetê-las. 

No fim das contas, o desafio de Sabine, ao se colocar lado a lado com Machado, já não era pouco; e um dos efeitos contraditórios de sua forma pedagógica de ensinar quem lê a desconfiar do Dr. Rui pode, por acidente, provocar desconfianças também em relação a Niara — se não a desconfiança na narradora em si, pelo menos desconfiança na história. Vivemos em uma época em que o ceticismo parece predominar em nossa forma de interagir com qualquer forma de mídia (e mesmo em nossas relações pessoais e crenças políticas); o desafio de movimentos literários como o Afrofuturismo, ou o Solarpunk, ou outras dessas que ousam imaginar um futuro bonito possível começa por aí. Assim, a opção de Sabine por fazer a narrativa caminhar tão paralela à de um dos mestres dos narradores em que não se confia não ajuda quem lê a estar no estado de espírito certo para acreditar nas maravilhas do domínio do Senhor do Tempo e na ação de seus imortais. A narradora indisposta, os saltos no tempo, a metaficção, entre outros, são elementos que trabalham contra os outros recursos literários, morais e tecno-mágicos que a autora emprega para fazer quem lê confiar na narrativa de Niara.

Mas talvez esse meu pessimismo em relação à recepção da história parta de outro lugar: por interessante que tenha sido a reconstrução e a releitura que “A Imortal” promove de “O Imortal”, sei que uma parte de mim anseia mesmo é por ler uma história onde a sombra que Rui de Leão projeta seja menor: uma em que conheçamos mais imortais e suas ações contra a opressão e a escravidão; uma em que leiamos mais aventuras de Kieza, ou saibamos mais sobre a comunidade do Íròkò e dos imortais. Mas aí, talvez, já fosse para outra série, não a das Releituras Afrofuturistas.

No fim das contas, segue para sempre essencial a pena da galhofa de Machado de Assis, que nos ensina a desconfiar das histórias que se contam sobre o presente, ou o passado que elas inventam. Mas acredito também que, no mundo já quase em overdose de seu próprio ceticismo, são importantes as histórias, como a que saiu do jogo de búzios de Sabine Mendes, que queiram nos ensinar a acreditar sinceramente em um futuro.

Ilustração de um escudo verde com a cabeça de um leão de perfil desenhada em linhas douradas.

Yuri Cortez comete todo tipo de texto com gosto, exceto os acadêmicos e os autobiográficos. Além da VAL, é facilmente encontrável no TalvezBlog e no YouTube, e aleatoriamente encontrável em outras revistas e saites por aí, quem sabe...

Revisão: Gabriel Yared

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