Sunset Val: a rainha dos sete céus

Antes de ler, verifique se paraquedas foram inventados no seu universo.

Imagem cujo fundo é o céu no por do sol, ainda laranja em baixo e azul escuro em cima (na real é um tom muito bonito). Os cantos da imagem tem engrenagens brancas. No lado direito há uma ilustração vinho de um dirigível sobre uma cidade, e do lado esquerdo três capas dos livros da série Sunset Val, duas atrás, e a da frente mostrando uma mulher jovem, ruiva, vestindo roupas vitorianas e óculos de aviador, segurando uma pistola antiquada. O título diz "sunset val: queen of the seven skies" de Rob St. Martin.

É meio inevitável que editoras queiram trazer pra o Brasil livros que são populares lá fora, mas, da mesma forma que alguns programas de televisão conseguem flopar nos Estados Unidos e se tornarem icônicos no Brasil (saudades, “Mundo de Beakman”), às vezes penso que o mesmo poderia acontecer na literatura. Hoje eu queria falar sobre uma série meio caótica e tragicamente desconhecida de livros em que uma garota com muita síndrome de protagonista passa a combater a tirania num mundo steampunk de piratas aéreos: “Sunset Val: Queen of the Seven Skies”.

É sério, eu não consigo me conformar com o quão desconhecida é essa série. Da primeira vez que li, eu não estava prestando muita atenção nisso, mas achei que tinha, sei lá, umas 150 classificações na Amazon. Isso é bem pouco, mas está dentro do que a gente espera para um livro indie. Quando comecei a cogitar escrever este post, olhei com mais calma e vi que eram 5. Eu até cacei loucamente pra ver se não tinha outra edição com mais avaliações, porque às vezes tem mais de uma página do mesmo livro e as estatísticas ficam divididas.

Mas não.

No Goodreads, 16 pessoas se deram ao trabalho de classificar com estrelinhas, e só 3 escreveram avaliações (no Goodreads tem mais edições listadas, então talvez eu tenha deixado de contar alguma). Como uma representante dessa população minúscula, eu sinto que é meu dever gritar bem alto: Sunset Val, come to Brazil!!!

Agora os disclaimers: eu gosto muito desses livros, mas eu reconheço que não são perfeitos. Tá tudo bem você gostar de uma coisa e reconhecer os pontos em que ela pode melhorar, ou que você sabe que não vão agradar outras pessoas. Eu pretendo falar deles no final, depois de todos os meus surtos empolgados de fangirl.

Considerando o quanto esse livro é desconhecido, eu acho justo começar contando como descobri sobre a existência dele. Foi através de uma música.

Bom, existe uma banda de rock steampunk chamada The cog is dead (por favor, não me perguntem como a gente define steampunk musicalmente), e em setembro de 2019 o Spotify me avisou que eles tinham uma música nova: “Sunset Val the Pirate Queen”.

O estilo era bem “cantiga sobre feitos heróicos”, e eu gostei, mas o que me pegou mesmo foi a letra, que narrava uma garota do nosso mundo cruzando um portal para um mundo de navios voadores, sendo capturada por piratas traficantes de escravos e organizando um motim para libertar todos os prisioneiros. A música termina com ela chutando o capitão pirata para fora do navio e decidindo levar a briga adiante, lutando contra a tirania em outros céus!

Isso parecia muito legal.

Tão legal que eu decidi usar essa música na aula de inglês, e nos comentários do vídeo no YouTube eu descobri que a música era baseada num livro. Obviamente fui pesquisar o livro e descobri que estava disponível no Kindle Unlimited

Assim que eu consegui a primeira promoção de 3 meses por R$ 1,99, li os quatro volumes da série um atrás do outro. Pensa numa leitura rápida e impossível de largar. Os livros são curtinhos — não sei se curtos o suficiente para serem chamados de novelas — e com uma escrita simples, mas fluida.

Você pensaria que a letra da música cobre os eventos do livro 1 (pelo menos, foi o que eu pensei), mas na verdade ela chuta o capitão pirata pra fora do navio em mais ou menos 50% do livro, então isso te dá uma noção do ritmo acelerado da narrativa.

A história segue a protagonista Valerie, uma garota do nosso mundo que acaba sendo pega por um portal interdimensional. Esse portal foi criado por um cientista [cof cof] maluco [cof cof] que explica sobre as correntes de éter separando um mundo do outro e mostra o mapa mundi dessa realidade alternativa, destaque para o continente enorme entre a América do Norte e a Europa, um tal de Império Atlan que essencialmente domina o mundo há uns 6 mil anos. Infelizmente, antes que o cientista possa fazer uma tentativa honesta de ligar a máquina de novo pra enviar a Valerie pra casa, o dirigível deles é atacado por piratas, seguindo o que foi narrado na música.

O que a música não tinha falado é que esse é um mundo com um monte de raças estranhas. Por exemplo, a tecnologia de juntar pedaços de cadáveres e reanimá-los com eletricidade é razoavelmente comum, e isso cria toda uma classe de mão de obra barata chamada de patchworks — tipo colcha de retalhos mesmo. Então tem um povo inteiro de criaturas de Frankenstein como classe trabalhadora oprimida. A “filha” do cientista louco é uma patchwork, e, depois que elas se livram dos piratas, ela se oferece pra tentar recriar o portal e mandar a Val pra casa. Existe um país de vampiros que usa sangue como moeda, o que levou à invenção dos refrigeradores. A imediata da Val é uma vampira mestra-espadachim, e as duas desenvolvem um laço mental. Existe um país que dominou a engenharia genética num nível que a maior característica cultural deles é ter características animais, e a engenheira do navio é uma moça com orelhas e rabo de gato que foi a primeira do seu povo a frequentar a universidade chique em Atlan!

E isso é no primeiro livro. Mais coisas vão aparecer — lobisomens, zumbis, dinossauros, uma breve menção a sereias —, mas de alguma forma eu não achei que ficou incoerente. É um caso em que “menos é mais”. E, como todas essas coisas são perfeitamente lugares-comuns nesse mundo, e a ciência que governa cada um desses povos é perfeitamente conhecida (por todo mundo menos pela Val e por nós que estamos lendo), ninguém faz grandes monólogos expositivos sobre como as coisas funcionam, e isso minimiza a chance de ter furos gritantes.

Agora, o que eu queria mesmo apontar é o seguinte: a Val, a filha do cientista louco, a imediata, a engenheira… Reparou? Todas mulheres. A tripulação d’As Fúrias (o navio da Val) é 100% feminina, e isso foi um pequeno abraço de girl power que eu gostei demais.

Mas aqui também é um bom lugar para começar a falar do que o livro não faz tão bem. O livro é escrito numa visão tão cis-heteronormativa que, quando elas discutem se vão manter a tripulação 100% feminina, elas decidem fazer isso “para evitar romance entre os membros da tripulação”. Quer dizer, ninguém nem sequer pensou na possibilidade de tripulantes sáficas. Isso é um grande revirar de olhos, mas eu não acho que atrapalhou no resultado final, porque não afeta a parte de lutinhas de espada e batalhas aéreas, e a parte das relações humanas da série é 80% ocupada por amizades e politicagens maravilhosas. Só achei que devia ser colocado na mesa porque a gente tem que reconhecer as falhas na execução.

Como eu falei, a narrativa é simples, rápida e não dada a muitas explicações, então muita gente não vai curtir tanto o estilo, e provavelmente uma releitura com menos hype vai revelar uns quinze furos de roteiro. A salada de povos — inventados ou claramente baseados em povos reais — é tamanha que provavelmente algumas personagens foram caracterizadas com estereótipos, e é muito fácil cair em alguma coisa ofensiva. Eu não reparei em nenhuma, mas se alguém ler e disser que achou eu também não vou ficar surpresa.

E a protagonista é sim uma adolescente branca — ruiva — do norte global que chega no lugar e bota ordem na parada toda quando o Império Atlan está escrotizando o globo há 6 mil anos e ninguém fez nada para impedir. Não tem justificativa pra isso, só o poder do protagonismo beirando Mary Sue. Piora: nos dois primeiros capítulos, antes dela atravessar o portal, ela tem uma personalidade “eu não sou como as outras, eu uso um chapéu legal e faço esgrima!!!” que é insuportável, mas eu sou da opinião que, num livro sobre uma garota sequestrada por piratas que acaba derrotando um império, a parte antes dos piratas aparecerem não conta. Depois que começa a ação, eu acho que ela é uma narradora divertida e uma boa capitã (a imediata vampira ajuda muito).

E é isso.

Se você, como eu, acha que os méritos dessa aventurinha despretensiosa cheia de mulheres únicas e poderosas superam as desvantagens, a gente só tem que achar uma editora que compre a nossa briga.

Fotografia de Ana Carorina Dantas, uma mulher branca de cabelo joãozinho, usando óculos retangulares. Ela tem sobrancelhas grossas e uma trança fininha caindo sobre o ombro.

Ana Carolina Dantas é física nuclear e escreve histórias de fantasia e ficção científica focadas em relacionamentos interpessoais. Ela tem alguns contos na Amazon e publica na sua newsletter uma história de vampiros. Ana gosta de RPG, assiste One Piece enquanto lava louça e aparentemente é editora-chefe da VAL (ela nega as acusações).

Revisão: Mile Cantuária

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