Resenha remix - Ordem Vermelha

Antes de ler, verifique se tudo o que te disseram sobre a razão de você ocupar seu lugar no mundo não passa de uma fabricação mentirosa.

Banner contendo uma ilustração de morte encapuzada com rosto de caveira segurando uma foice. A morte está em preto e branco, e olha para o lado com carinho colocando uma mão caveirosa delicadamente sobre a capa do livro Ordem Vermelha: Filhos da Degradação, do Felipe Castilho. A capa mostra uma estátua de três rostos com detalhes dourados, e duas pessoas sobre uma plataforma de madeira arruinada. Ao lado da capa há um círculo com a foto do M. P. Neves e o título "Resenha Remix - m p neves"

Outra resenha remix em que eu venho saudar a obra como uma das melhores do gênero. Não pensem que eu estou exagerando ou me repetindo. Estou fazendo a curadoria ideal para vocês! Desta vez, é a duologia “Ordem Vermelha”, de Felipe Castilho. Com seis anos de diferença entre a escrita do primeiro e do segundo livro, essa obra mexeu comigo de formas incomuns. Me fez parar e observar como a minha vida mudou entre um lançamento e outro.

Quando li “Ordem Vermelha: Filhos da Degradação”, eu mal estava começando minha jornada como escritor. Já era um leitor voraz, mas apreciava as histórias pelo que eram, não tinha a visão da técnica envolvida, nem concebia o esforço necessário para se construir tramas complexas e personagens cativantes. Adorei o livro de primeira, mas na releitura pude confirmar, com toda a certeza, que é uma das melhores obras da fantasia nacional.

Castilho não poupou esforços na criação de mundo. Lançando mão de um artifício comum na alta fantasia, que é iniciar a história pelo mito de criação, o autor criou Untherak, sua Deusa Una e suas seis raças, porém subverteu o clichê e destruiu todas as convenções estabelecidas, porque uma cosmogonia organizada não pode ser outra coisa senão um mito. E a duologia trata justamente do poder que essas narrativas engendradas possuem de controlar o povo e sustentar a opressão de milhares.

No primeiro livro, somos apresentados à cidade de Untherak como o último refúgio da vida civilizada. Erguida no meio de um deserto inóspito, conhecido como A Degradação, a cidade é governada com mão de ferro pela Deusa Una, que teria punido suas criações por uma guerra do passado, passando de bondosa a tirana devido à ingratidão dos humanos, gigantes, anões, sinfos, kaorshs e gnolls. Cada raça teve sua punição e, embora nem todas sejam tão exploradas no primeiro livro, dá pra ter uma boa noção do que representam e como se relacionam.

Mais que um mundo estranhamente belo em seu caos urbano e governo opressivo, temos personagens realistas com as quais nos importar. Aelian, o jovem falcoeiro, capaz de aprender a ler por conta própria numa cidade onde isso é altamente proibido, descobrindo seu lugar como guerreiro e rebelde, Raazi, a guerreira destemida enfrentando uma perda e lutando pela memória da esposa, Harun, dividido entre proteger sua família e criar um mundo melhor para ela, entre muitos outros, são figuras marcantes, que nos capturam em suas jornadas e nos fazem torcer por seu sucesso e lamentar seus revezes.

“Filhos da Degradação” é uma obra completa, no sentido de que entrega todo o necessário para um grande épico de fantasia em suas quatrocentas e tantas páginas. Foi muito bom revisitar Untherak, mesmo que seja um lugar terrível de se viver. Porém, o segundo volume, “Crianças do Silêncio”, expande a história de um modo delicioso, respondendo às questões e aos ganchos deixados no primeiro livro, ao mesmo tempo que enriquece a criação de mundo que tornou Untherak tão especial. Revemos antigos protagonistas e conhecemos novos personagens, aliados e vilões numa jornada para além da última cidade. Os arcos narrativos de cada protagonista, já bem trabalhados no volume um, se expandem e ganham novos nuances no segundo livro, com Aelian buscando novos mentores e amadurecendo em meio à luta pela libertação, Harun se reconciliando com seu passado ancestral e aceitando a necessidade de sacrifício, e Raazi confrontada com o fato de que suas ações a tornaram mais que uma guerreira temida, uma líder e um exemplo para as pessoas à sua volta. 

Se a revolta contra a Deusa Una era justificada no volume um, no segundo desejamos muito mais do que apenas vingança. Os novos vilões são igualmente terríveis, o mundo desolado além das muralhas tem uma beleza mortal, com desertos de sal, montanhas com ossos de gigantes e pântanos venenosos. Elementos antigos são revisitados e elementos novos complementam a narrativa e o universo com aquela sensação satisfatória de quebra-cabeças que se encaixa perfeitamente.

Por baixo de toda a fantasia exuberante, que não deve nada a nenhuma obra gringa, Ordem Vermelha é uma duologia sobre desigualdade e o poder que a ideologia tem de controlar uma classe oprimida. A duologia fala sobre como a construção de um mundo melhor é um esforço conjunto, e passa pela construção, antes de tudo, de relações de confiança e comunidade. Por isso, ressoou ainda mais comigo, e merece lugar na estante de qualquer leitor de fantasia brasileiro.

Foto de M. P. Neves, um homem branco de cabeo bem comprido e cavanhaque. Ele usa óculos e uma caiseta preta, e olha bem sério para a câmera.

M. P. Neves, autor da trilogia “A Ruína de Noltora” (Amazon), não acredita em finais felizes e bebe um copão de lágrimas de leitories todo dia de manhã. Quando ninguém está olhando, escreve histórias fofas como “Música Roubada” (Amazon). Os finais ainda são trágicos.

Revisão: Davi Dallariva

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