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Quando a narrativa sangra, a verdade não importa: “Pequenas hemorragias”, de Moacir Fio
Antes de ler verifique se o que “aconteceu de verdade” está do lado de dentro ou de fora da história.
Veja bem, querida pessoa leitora da VAL: eu tendo a desconfiar das coisas, e quando estou lendo fico ainda pior. É gostoso perceber num narrador um trejeito estranho, uma escolha de palavras que omite mais do que revela, um relato que contradiz o outro, etcétera, etcétera. Mas se tem uma coisa que me desanima são aquelas discussões que às vezes acontecem no fim dessas histórias (às vezes nem tão) complicadas, mas completamente ficcionais, em que se debate “o que aconteceu de verdade”. Uai, minha pitanguinha, o que aconteceu de verdade é que alguém contou uma história e outros alguéns ouviram, ou leram, ou assistiram; mais nada.
Por mais que isso de elaborar “teorias” e “desvendar pistas” e aprender o “lore” seja um elemento muito forte na nossa cultura que consome os livros até o bagaço, eu tenho pra mim que não é o jeito mais gostoso de se compartilhar uma história. Você, obviamente, é livre para ler como quiser (vê se eu ligo?), mas se quiser um antídoto para combater seus impulsos mais graves de querer a todo custo saber o que é “verdade”, eu acho que tenho um antídoto pra você:
O livro “Pequenas Hemorragias”, de Moacir Fio, lançado pela Patuá em 2023, é uma coletânea de contos em que correr atrás do que é real tende a ser uma má ideia. O livro passeia por formas diferentes de produzir em quem lê a sensação de medo, de desorientação, principalmente através da diluição das fronteiras entre o horror e o violento que há no cotidiano e o horror e o violento que há no fantasioso (apesar de que “Amigo morto” e “Rainha Naja” me causam também uma sensação gostosinha de ódio de classe, e lembro de ter rido alto no ônibus não me lembro em qual tirada de “O último disco de Wendy O. Williams”). Dentro dessa caixa de remédios toda, porém, o antídoto mais forte e específico mesmo para o problema de quem quer ler para saber “o que aconteceu de verdade” é, na minha opinião, o conto “Projeto de fim de mundo”.
“Projeto de fim de mundo” tem uma característica que eu gosto muito nas grandes histórias, que é ser constituído de camadas diferentes contando outras histórias (como uma cebola de histórias, ou um ogro). A camada principal é a história de Delane, uma historiadora pesquisando os relatos orais a respeito do massacre do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto. Diante de um bloqueio na escrita, seu orientador sugere que ela faça um curso de escrita criativa para acadêmicos com um colega de departamento, e daí Delane passa a escrever várias versões de uma história sobre o “fim do mundo”, após sortear o tema em uma das aulas.
O problema central do conto é que a personagem não consegue mais confiar em sua memória, desde que as histórias orais que ouviu sobre a destruição do Caldeirão apresentavam versões tão discrepantes entre si. A escolha narrativa de Moacir de contar a história a partir da terceira pessoa sem, porém, jamais abandonar a perspectiva de Delane nos coloca nesse lugar estranho enquanto quem lê: não podemos confiar plenamente na narrativa, porque nem a personagem principal tem certeza do seu passado. E do passado, as incertezas transbordam entre as diferentes camadas da história: o fogo do Caldeirão escapa para as histórias que Delane escreve sobre o fim do mundo; a história de Socorro é um eco do que com acontece com a avó de Delane e sua doença, e do “medo do corpo” resultante na própria personagem; a história de Clarinda um espelho distorcido da infância da protagonista, da sua relação consigo mesma, com sua família, com seu pai; entre muitos outros vazamentos, cada vez mais graves — mas daí você vai ter que ler por si mesma.
O que aconteceu de verdade? Qual destes fragmentos de história, qual destas lembranças trancadas, truncadas e resgatadas “realmente aconteceu”? Como sabemos o que vazou apenas “dentro da cabeça” de Delane e o que vazou “de verdade”? Não acho que essa seja uma chave de leitura produtiva. O importante, em Projeto de fim de mundo, não é a verdade das histórias que o conto conta, mas as incertezas da memória que ele transmite, e as imagens através das quais faz isso.
O Caldeirão de Santa Cruz do Deserto aconteceu de verdade. O massacre também. Mas até hoje a memória da comunidade e do massacre permanecem em risco constante de desaparecer. Não sabemos onde está a vala comum onde o exército enterrou os mártires da chacina. Metade dos links do artigo da Wikipédia já está fora do ar. Mesmo que não seja o meu favorito do livro (provavelmente quem leva essa é Antes havia pássaros, ou Wendy O. Williams) acho que Projeto de fim de mundo é o conto perfeito para ilustrar essa corrida que temos que fazer para resgatar e preservar nossas memórias diante de mais um mundo que termina.
Yuri Cortez comete todo tipo de texto com gosto, exceto os acadêmicos e os autobiográficos. Além da VAL, é facilmente encontrável no TalvezBlog e no YouTube, e aleatoriamente encontrável em outras revistas e saites por aí, quem sabe... |
Revisão: Luiz Felipe Sá
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