Resenha: “Páginas de Sombra: contos fantásticos brasileiros”

Antes de ler, verifique se não se perdeu nas páginas de sombra de algum livro.

Banner ilustrativo de fundo escuro na cor cinza. À esquerda, há uma montagem com a capa do livro “Páginas de Sombra: contos fantásticos brasileiros” em um tablet. À direita, está escrito “Resenha do livro ‘Páginas de Sombra: contos fantásticos brasileiros’” junto da foto de Rai Gumerato. A capa do livro mostra a cabeça de uma estátua com outras cabeças iguais nos lugares onde deveriam ser os olhos, o título está em caixa alta e fonte azul, o fundo é cinza do mesmo tom do fundo do banner. Rai Gumerato é uma pessoa branca de cabelos castanhos curtos e roupas pretas. Está segurando um caderno de capa escura nas mãos, em frente a um fundo amarelado.

Alguns livros surgem em nosso caminho por acaso e nos marcam tanto que até parece obra de algum ser mágico. Pouco mais de uma década atrás, me deparei com um livro fininho cuja capa instantaneamente chamou minha atenção: destacada bem no centro de um fundo preto, havia a ilustração de uma cabeça com dois rostos no lugar dos olhos. Ao verificar antes de ler (desculpe, não resisti), uma surpresa: contos fantásticos brasileiros.

Até então, minha bagagem literária era formada apenas por autores estrangeiros. Não era comum ver histórias de fantasia nacional nas livrarias. O mercado independente nem sequer era conhecido (e difundido) na internet como hoje. Por isso, encontrar "Páginas de sombra" foi um acontecimento tão especial na minha vida. E é claro que decidi compartilhar esse livro com você, leitore da VAL.

Um pequeno aviso antes de começarmos: a edição que resenho é a que tenho, de 2012, e possui apenas 10 contos. As duas outras edições do mesmo livro abrigam mais histórias. Você pode consultar todas as versões de "Páginas de Sombra" no Skoob.

Flor, telefone, moça – Carlos Drummond de Andrade

Juntando elementos típicos do horror (uma ida ao cemitério e um fantasma capaz de usar a tecnologia a seu favor), Drummond nos envolve com sua prosa mineira para contar uma história aterrorizante e bem melancólica. O conto tem tudo o que eu gosto: narração que não enrola e, ao mesmo tempo, diz tudo o que é necessário, e um final sofrido que te deixa triste por um bom tempo.

Teleco, o coelhinho – Murilo Rubião

A história nos apresenta o encontro de um homem com uma criatura extremamente irritante que muda de forma. A aparência de Teleco é tão mutável quanto seu próprio caráter, culminando em um final agridoce que mais parece cena de novela ruim. Quando li pela primeira vez, este foi o conto do qual menos gostei. Mantive minha opinião nesta releitura.

A escuridão – André Carneiro

Este conto andou para que Saramago e seu "Ensaio sobre a Cegueira" pudessem correr: parágrafos longos, narrativa densa... Não é uma história capaz de agradar qualquer um, mas se tornou uma das minhas favoritas da antologia. Se o mundo fosse tomado pela mais completa escuridão, como você reagiria?

A casa "sem sono" – Coelho Neto

Um homem se muda para uma casa que tem fama de não permitir que seus habitantes durmam. Assim como essa sinopse, o conto é corrido demais e me deixou com vontade de saber mais sobre a tal residência, o que me impediu de aproveitar e gostar o suficiente da leitura.

As Academias de Sião – Machado de Assis

Na pequena nota antes do conto, o organizador da antologia reflete sobre como um tema tão debatido atualmente (pessoas transgênero) aparece nessa história, ainda que com a visão de sua época. Insatisfeitos com os papéis de gênero que lhes foram designados, o casal protagonista decide trocar de corpo. É sempre incrível ler Machado, dessa vez não foi diferente.

O caminho de Poço Verde – Rubens Figueiredo

Uma súbita obsessão com um lugar chamado Poço Verde faz com que a protagonista desta história decida largar tudo e partir numa viagem que pode não ter mais volta. Uma espiral de agonia, essa é a única definição que consigo pensar para este conto.

Íblis – Heloisa Seixas

Outro conto que não me fisgou, seja pelo estilo de escrita ou pelo tema, que, a meu ver, poderia ser muito melhor aproveitado não fossem algumas escolhas de frases que flertam com estereótipos não tão bem vistos hoje em dia. Na trama, uma mulher acaba se envolvendo com o Diabo durante uma viagem.

As formigas  – Lygia Fagundes Telles

Duas amigas alugam um quarto e descobrem uma misteriosa caixa, uma ossada e uma infestação de formigas. Se você acha que esses pequenos insetos não são capazes de dar medo, precisa ler este conto!

Os olhos que comiam carne – Humberto de Campos

Com a atmosfera de um filme de ficção científica/horror trash dos anos 80, nesta história acompanhamos um homem que, após ficar cego durante um dia de trabalho, realiza um procedimento que promete reverter o dano no nervo óptico. Obviamente as coisas não dão tão certo, e os últimos parágrafos me deixaram com um sorriso maléfico no rosto.

Demônios – Aluísio Azevedo

Primeiro, foram as luzes de todos os tipos. Depois, os sons. Nesta história, o mundo simplesmente começa a se desfazer, sobrando apenas o protagonista e sua noiva, Laura. O final é o que classifico como uma grande maluquice, mas todo o conto é narrado de forma muito interessante.

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Apesar de usar o termo fantástico, muitos contos desta antologia podem facilmente ser classificados como horror. Como alguém que adora misturar os dois gêneros, porém, irei me abster de julgar os critérios utilizados para classificar os textos.

“Páginas de Sombra” nos mostra que o fantástico nacional segue seu caminho há um bom tempo, tanto pelas mãos de autores clássicos quanto por novas vozes que surgem a cada dia. Livros como este derrubam qualquer argumento contrário à importância e influência do gênero na literatura brasileira.

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Livro: Páginas de Sombra: contos fantásticos brasileiros

Organização: Bráulio Tavares

Autores: Carlos Drummond de Andrade, Murilo Rubião, André Carneiro, Coelho Neto, Machado de Assis, Rubens Figueiredo, Heloisa Seixas, Lygia Fagundes Telles, Humberto de Campos, Aluísio Azevedo

Ilustrações: Romero Cavalcantti

Editora: Casa da Palavra

Ano de publicação da edição resenhada: 2012

fotografia da cintura pra cima de Raíssa Gumerato, uma pessoa branca de cabelo castanho escuro curto. Na imagem ela segura um livro de capa preta e olha para o livro em vez da câmera. A blusa dela também é preta de mangas compridas, mas com um corte no ombro.

Com uma obsessão nada saudável por coisas sombrias, Rai Gumerato desde criança aprendeu a gostar mais das trevas do que da luz. Suas narrativas seguem a linha tênue entre fantasia e horror e já lhe renderam prêmios na plataforma Scriv e participações em antologias. Criou em 2023 a newsletter Especulação. Seus links estão aqui.

Revisão: Luiz Felipe Sá

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