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Pixelando a realidade: resenha do livro “Olhos de Pixel”, de Lucas Mota
Antes de ler, verifique se sua sociedade não é dominada por uma igreja corporativista.
“Olhos de Pixel”, escrito por Lucas Mota, é o grande vencedor do prêmio Jabuti de literatura de entretenimento em 2022 (prometo que não vou opinar sobre a existência dessa categoria, mas tenho opiniões). Um cyberpunk dinâmico de ação com alguns comentários sociais em sua substância, como um bom cyberpunk costuma fazer.
Quer dizer, o cyberpunk é esse subgênero que surgiu nos anos 80, construindo uma crítica ao capitalismo tardio e uma ode à luta de classes e ao anarquismo, mas que é muito específico de seu próprio tempo. Lewis Shiner, escritor estadunidense, em seu “Confissões de um ex-cyberpunk”, diz que:
O cyberpunk tornou-se um clichê. Outros escritores tinham transformado a forma em fórmula: implantes wetware, corporações multinacionais governando o mundo, estilo de rua, jaqueta de couro, protagonistas apaixonados por anfetaminas e colônias orbitais em decadência. (...) Para nós, o cyberpunk em sua nova encarnação tem se voltado para a tecnologia pela tecnologia e perdido seu impulso original.
Ou seja, o gênero, como forma de crítica, morreu para se tornar estética. O cyberpunk, hoje, ainda existe, mas é difícil encontrar algum que realmente se preocupe com as intenções originais do subgênero, porque é muito fácil ser seduzido pela sua estética geral. “Matrix” é um filme que discute muita filosofia, mas as pessoas sempre vão lembrar primeiro das cenas de ação empolgantes, do bullet time, das roupas de couro.
E o que Lucas Mota faz em seu livro é a utilização dessa estética para dar cor ao livro, ao passo que traz discussões dignas de um cyberpunk clássico. Enquanto seus personagens saltam sobre biarticulados (algo como carros voadores) em cenas de ação intensas, acessam smartselfs (implantes neurais que dão acesso a uma série de coisas, inúmeras possibilidades) e hackers invadem o sistema de justiça, o comentário social está lá. Não apenas sobre a luta de classes, sobre os ricos e os pobres, mas algo muito mais brasileiro. O tipo de questão que não é bem universal, mas problemas sociais que fazem parte da nossa realidade.
Mas vamos lá, vou falar um pouco sobre o que é o livro.
“Olhos de Pixel” conta a história de Nina Santelles, uma root, ou seja, uma pessoa que hackeou seu implante neural, o smartself, para que ela tenha a liberdade necessária. Ou seja, seus dados não vão para empresas corporativistas, as propagandas direcionadas ao cérebro não são mais presentes e há uma liberdade irrestrita em acessar outros tipos de redes, proibidas para a população geral. Não é preciso dizer que isso é um crime, claro, e todos os roots são tratados como bandidos — seja por cometerem crimes, seja pela população geral, que acredita que bandido bom é bandido morto.
Então Nina Santelles é essa root, criminosa, líder de uma equipe com mais duas pessoas. Em um roubo, tudo dá errado e elas param na polícia. Lá, elas são colocadas num programa fadado ao fracasso, que obriga os roots a trabalharem para a polícia em troca de liberdade ou de outras coisas. No caso delas, uma passagem para a colônia Chang’e. Nina aceita trabalhar porque quer dar uma vida melhor ao seu filho, Paulo, que vive com sua avó extremamente religiosa. Nina quer mandá-lo para essa colônia e não viver mais na periferia dessa Curitiba cyberpunk, onde seu filho está fadado a não ter um futuro digno.
E aí vem o dilema: o trabalho que deve ser feito é para localizar Kalango, um hacker que roubou algum arquivo da igreja, aqui funcionando como uma empresa privada imensa, e prendê-lo finalmente. Sem escolha, Nina precisa aceitar. Para dar um futuro digno ao seu filho, ela precisa trabalhar em conluio com a polícia, que persegue gente como ela, e com a igreja, que é contra a existência de pessoas como ela.
Claro, a história vai para além disso, com Nina e seus aliados da equipe — Tera e Iza, personagens extremamente carismáticos — precisando fazer e desfazer alianças, sendo jogados de um lado para o outro e refletindo sobre suas próprias escolhas de vida. Isso tudo enquanto orquestram assaltos, entram em perseguições e combates e descobrem que nada é como parece ser.
Lucas Mota, nos agradecimentos no final do livro, diz que se sente no lugar de fala por ter nascido em berço evangélico, ou seja, ele compreende as hipocrisias dessa igreja nos dias de hoje. O que ele faz é exacerbá-las nesse livro, ao passo que a transforma em uma empresa. A igreja, aqui, faz negócios e praticamente comanda o país. Quando até a polícia é privada, o poder está nas mãos de quem tem mais dinheiro. E, nesse caso, é a igreja. Suas propagandas bombardeiam diretamente o cérebro de todo mundo e as pessoas vivem com uma certa dormência, acreditando fielmente nas palavras do profeta.
E, claro, o plano geral deles, do arquivo roubado pelo hacker, é uma coisa tenebrosa, das atitudes mais cruéis que li nos últimos meses.
Então Lucas Mota arma esse cyberpunk de implantes neurais como uma maneira de conversar sobre a virada conservadora — muito guiada pelas igrejas evangélicas — do nosso país. Ao posicionar o time principal de protagonistas como minorias (Nina é queer, Tera é um homem trans), aqui chamados de “antifamílias”, ele deixa bem explícito o comentário que quer passar: o conservadorismo das massas decide quem deve existir e quem não deve. E, se esse conservadorismo tiver poder o suficiente, aqui transmitido na forma de influência política e do corporativismo capitalista, essas decisões podem sair de pensamentos e preconceitos e tomarem formas reais.
De certa maneira, esse é um cyberpunk que exagera as coisas que já acontecem no país hoje. Não apenas em sua tecnologia (as smartselfs nada mais são que smartphones que podem ser acessados mentalmente, sem a necessidade de um hardware), mas no pensamento conservador no geral, e na maneira com que o capitalismo se comporta para deixar uma parte da sociedade dormente. É assustador porque é real.
E antes de finalizar, eu queria comentar um pouco sobre a personagem de Lídia Gaber, a policial que é obrigada a trabalhar com os roots comandados por Nina: inicialmente ela é alguém que acredita numa justiça policial, que pensa que pode tentar mudar o sistema por dentro. Eu gosto dos dilemas que ela traz para si mesma e para a história. A polícia paramilitar é muito mais violenta que a nossa polícia hoje em dia, principalmente porque essa violência é bem aceita e até preferível pela sociedade. E, sendo uma polícia privada, fica à mercê das decisões corporativistas. Eu gosto muito do caminho que a personagem toma, principalmente no terço final da história. O seu pensamento sobre como mudar a sociedade se desenvolve e ela toma atitudes desesperadas. Enquanto pensei que ela seria apenas uma personagem feita para gerar esse embate com a protagonista, ela cresceu e tomou a única decisão que realmente poderia fazer a diferença no mundo. Um caminho que histórias com personagens policiais não costumam seguir.
Enfim, “Olhos de Pixel” é muito bom. A escrita de Lucas Mota é fluida e o livro, sendo curto, é possível terminá-lo em algumas sentadas. Uma história que tinha tudo para ser carregada e até difícil de seguir em sua leitura pelo tema em si, mas a escrita é leve, os aparatos tecnológicos não são complicados e são explicados de forma simples, os personagens são carismáticos e as cenas de ação intensas. É um livro que vale a leitura tanto pela discussão social que ele traz, digna de um bom cyberpunk, quanto pelo alto teor de diversão.
R.R. Portela, morador do RJ, divide seu tempo entre seu trabalho, sua escrita e ser pai. Apaixonado por fantasia, você sempre vai encontrá-lo em mundos criados por ele ou por outros. Você pode acompanhá-lo no blog Cozinhando Mundos. |
Revisão: Davi Dallariva
Você já conhecia “Olhos de Pixel”? Já leu algum livro cyberpunk? Lembre que a seção de comentários fica aberta, e adoraríamos ouvir suas opiniões e experiências de leitura!
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