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Quando filme vira livro
Antes de ler, verifique se as palavras estão escritas em papel, e não em celulose.
Quando o cinema surgiu e depois tornou-se um tipo de arte narrativa, comentava-se muito que era uma “arte menor”, ou que nem mesmo podia ser considerada assim. Um dos motivos (para além das questões de classe, já que uma arte popular nunca poderia ser considerada válida por intelectuais burgueses) era como o cinema parecia derivativo demais, seja do teatro, seja da literatura. Pois bem, não demorou muito para o cinema, como arte, provar-se algo com linguagem própria, incopiável em certos aspectos por qualquer outra arte, algo com sua própria cara, história e caminhos. E agora, mais de cem anos depois, tornou-se a arte mais popular, mais reproduzível, mais comum. Se você parar, sei lá, dez pessoas na rua e perguntar seu filme preferido, todas as dez terão uma resposta; mas, se perguntar qual livro favorito ou peça de teatro favorito, esse número cairá.
Viralizou o cinema como entretenimento, arte, cultura e estilo de vida, e seu transbordamento atingiu lugares como a literatura, o foco deste texto. Hoje, a principal forma de conhecermos narrativas é através do audiovisual. Isso gera efeitos inconscientes, claro, e a literatura contemporânea, para o bem ou para o mal, busca alcançar uma linguagem mais cinematográfica. Não estou aqui para fazer juízo de valor ou declamar por uma literatura “purista” (conceito irreal e muito bobo), apenas para discorrer e demonstrar com alguns exemplos como, na contemporaneidade, livros tendem a ser filmes escritos, caminho contrário ao que o cinema fazia quando começava a engatinhar. Novos escritores buscam novas inspirações, e a literatura evoluiu para um novo ponto, em forma e linguagem. O que quero mostrar aqui é que a contemporaneidade tem seu próprio estilo, que se difere do que veio antes e, com certeza, será diferente do que virá depois.
Linguagens que se misturam
A primeira coisa que me salta aos olhos quando penso nessa mistura de linguagens é na questão dos diálogos. Abra um livro do século XIX e verá diálogos mais truncados, cenas mais descritivas que faladas, ou seja, uma preocupação menor com a conversa, o falar de seus personagens. Um livro mais contemporâneo geralmente preza pelas falas e pelas maneiras diferentes de seus personagens falarem, desenvolvendo-os através da conversa, com tentativas de imitar o falar do cotidiano, abraçando um naturalismo comum, ou até falas mais poéticas; no fim, há todo um interesse em buscar um certo dinamismo através dos diálogos, antes muito instrumentalizados, no geral.
Indo além, entretanto, até mesmo o ritmo das cenas e suas descrições mudaram. A gente pode dizer que parte disso é culpa de um mundo muito mais veloz, afinal, as descrições (cenário, personagens, acontecimentos) são bem mais diretas do que as feitas antigamente, mas é inegável como há um ritmo mais cadenciado que aproxima a construção de uma cena mais visual e menos no campo das ideias. Uma organização esquelética buscada que se assemelha a um filme contemporâneo, que, além de encontrar seus significados pelo que é visto mais do que outros sentidos e, principalmente, ideias, traz esses mesmos significados menos através das palavras e mais através das cenas, de maneira direta.
Recentemente estive lendo “Amar, verbo intransitivo”, de Mário de Andrade, que, veja só, é um livro moderno, lançado em 1927, quando o cinema era ainda uma “arte menor”, e há uma maneira bem específica de descrever a protagonista, Elza, e sua relação com os demais personagens do romance: as descrições determinam uma passagem de tempo maior, enorme, enquanto narra o cotidiano comum dela, uma governanta, com a família Costa Sousa. Menos preocupado com o compasso das cenas, buscando contar essa passagem por meio de situações e repetições, somos apresentados a um momento fora do tempo, uma observação por cima do que acontece dentro daquela casa, sobre a relação de Elza com os Costa Sousa, sua maneira de pensar e até comentários sobre a situação da Alemanha pós- Primeira Guerra, assim como usa esse espaço para relacionar os Costa Sousa como uma família abastada e extremamente pedante culturalmente. Se “Amar, verbo intransitivo” fosse contemporâneo, haveria uma cena para desenvolver cada uma dessas características. Tudo seria cadenciado, buscando contar essas situações através de cenas dentro do tempo cronológico do romance, ordenadas cena a cena, em busca de associarmos esses personagens como personagens vivos, com arcos próprios e mais táteis, e depois seus significados, ânsias e desejos. Mário de Andrade buscou algo mais direto, traçando o tempo e dobrando-o de acordo com as necessidades desses personagens.
Até mesmo em uma cena de sexo, que nos dias de hoje seria descrita, seja através da cena física ou dos sentimentos de personagens, o narrador escolhe ficar fora do quarto, linguisticamente, e falar sobre outras situações que não se relacionam a nenhum personagem, mais ao tema geral do livro, apenas para dar tempo para “a ação” dos personagens. Algo completamente não visual.
Penso que há uma busca, tanto para leitores quanto para escritores, por construir narrativas que conversam com o jeito como estamos acostumados a percebê-las. E as narrativas mais comuns acabam sendo, pelo excesso de reprodução, a de filmes. Na infância, assistimos a desenhos e filmes antes de ler um livro. Mesmo que o escritor ou o leitor não perceba didaticamente as diferenças das linguagens cinematográficas e literárias, ele intui e as mistura. Incontáveis os livros contemporâneos que buscam meios literários para descrever montagem paralela, cortes abruptos e até cliffhangers que se assemelham ao fim de episódios de uma série. Mais do que perceptível, já é um caminho natural.
Gêneros que se misturam
Nem só da linguagem misturada vive a literatura contemporânea, mas da escolha da roupagem, ou seja, o gênero escolhido para contar determinada história.
O cinema, através de seus próprios caminhos, criou seus próprios gêneros. O Western, por exemplo, nasceu no cinema, e foi através dele que se tornou conhecido. Não que isso tenha impedido livros de faroeste de terem sido escritos, geralmente histórias pulp, surfando na fama do gênero. Em contrapartida, esses gêneros inspiram autores contemporâneos, que os escolhem por serem legais, por serem fãs e desejarem usá-los por prazer ou para fazer algo diferente.
Brandon Sanderson, talvez o maior escritor de fantasia contemporâneo, baseou uma das suas sagas mais famosas, “Mistborn”, no gênero de histórias de assalto, muito mais popular no cinema. Um dos seus livros mais recentes e não traduzidos no Brasil, “The sunlit man”, conta a história de um herói quase mitológico num mundo desértico com naves velozes e ação ininterrupta, assim como George Miller fez na saga Mad Max.
Dentro do Brasil, me vem uma pá de histórias de escritores que gostam o suficiente de tais gêneros e, querendo homenageá-los, escrevem sobre eles. De um jeito bem brasileiro, da maneira mais antropofágica que a gente pode fazer. Das light novels brasileiras, destaco aqui “Pétalas de Akayama”, de Bex Stupello e Thai Hossmann, muito inspiradas em animes de youkais, gênero de animação japonesa, e “Senab”, de Mateus Cantele, que é um abrasileiramento de animes de luta sobrenaturais como “Jujutsu Kaisen”.
De maneira até mais frontal, Diogo Andrade e Marina Feijóo pegaram um gênero totalmente cinematográfico e escreveram em cima. Diogo escreveu “A Canção dos Shenlong”, um livro que pertence ao gênero Wuxia, popularizado na China, que começou como literatura, mas se tornou popular mundialmente através do cinema, e que agora dá a volta completa e volta para a literatura. Marina Feijóo escreveu “Essa festa virou um slasher”, inspirado nos filmes de terror slasher.
E nós, leitores que buscam esse tipo de história, também estamos buscando nos associar e lembrar desses gêneros ao ler. Buscamos imaginar histórias com tais roupagens e signos, e imaginá-las como esses filmes dos quais gostamos. É natural. Temos essa relação com o que conhecemos e com o que gostamos.
A literatura se transformou. Mais que isso: o meio de percebermos narrativas atualizou-se. É um processo natural do tempo, e da arte como um todo.
R.R. Portela, morador do RJ, divide seu tempo entre seu trabalho, sua escrita e ser pai. Apaixonado por fantasia, você sempre vai encontrá-lo em mundos criados por ele ou por outros. Você pode acompanhá-lo no blog Cozinhando Mundos. |
Revisão: Mile Cantuária
Quais seus gêneros de filme favoritos? Conhece algum livro que capturou a vibe perfeitamente? Adoraríamos ouvir suas opiniões sobre o artigo!
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