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Oposição em quatro cantos
Antes de ler, verifique se tem bastante gente discordando!
Já leram um livro e tiveram a impressão de que, apesar da história ser boa, parece que a leitura não prende? É como se, durante todo o desenrolar da leitura, a trama ficasse pairando num plano mais superficial, sem nunca capturar de verdade a nossa atenção.
Acho que isso pode ocorrer por diversos motivos, e um deles é a ausência de um conflito relevante entre os personagens. Por conflito, entenda-se não um confronto verbal ou físico aleatório, mas a oposição de pontos de vista em um tema/questão que seja relevante no contexto da história. Em outras palavras: personagens entrando em confronto pelo embate de diferentes visões de mundo.
Na vida real, a oposição de ideias e valores pode ocorrer a todo momento e com todo mundo.
Essa teia de interesses e pontos de vista divergentes é uma das coisas que tornam interessante a interação entre um grupo de pessoas.
Por que, então, limitar a ficção apenas ao embate protagonista x antagonista?
No livro “The Anatomy of Story”, o autor, John Truby, afirma:
“Uma oposição simplista entre dois personagens elimina qualquer chance de profundidade, complexidade ou realidade da vida humana em sua história. Para isso, é necessária uma teia de oposições. Pense em cada um dos personagens — protagonista e três oponentes — como ocupando um canto de uma caixa, o que significa que cada um é o mais diferente possível dos outros.”
Para estruturar a oposição em quatro cantos, Truby sugere cinco regras que, para simplificar, vou resumir em três:
Regra 1:
Cada personagem deve usar uma forma diferente de atacar ou questionar a fraqueza do protagonista.
Ou seja, o protagonista tem uma visão de mundo, e ela é contraposta por algum argumento/acontecimento relevante oferecido por outro personagem.
Regra 2:
Cada personagem deve entrar em conflito — não apenas com o protagonista, mas também com todos os outros personagens.
“Você não apenas coloca o seu protagonista em conflito com três personagens em vez de um, mas também pode colocar os oponentes em conflito entre si. O resultado é um conflito intenso e uma trama densa.”
Regra 3:
Coloque os valores de todos os quatro personagens em conflito também no campo das ideias.
Este é um ponto importante: oposição não precisa (e não deve) ser limitada apenas ao campo das ações. A trama vai se beneficiar muito se a contenda também ocorrer no campo das ideias/valores/visão de mundo.
Truby aponta:
“Procure versões positivas e negativas do mesmo valor”.
Entendendo a figura
No centro, está o tópico em conflito. Pode ser qualquer valor ou questão cuja disputa seja interessante para o desenrolar da trama. Em um primeiro momento, faz mais sentido começar com o tema da história — aquela questão mais fundamental abordada na narrativa.
A figura é dividida em metades esquerda e direita, baseado em se os personagens concordam ou não com a afirmação temática.
A figura é também dividida em metades superior e inferior, baseado em se os personagens enxergam o conceito implícito no tema como algo positivo ou negativo.
Logo…
Protagoninsta: Discorda do tema e enxerga tudo ligado a ele como algo negativo.
Personagem 1: Concorda com o tema, mas reconhece nele aspectos negativos.
Personagem 2: Discorda do tema, mas confronta a protagonista com aspectos positivos dele.
Personagem 3: Concorda com o tema e enxerga nele apenas aspectos positivos.
O que essa figura torna claro é o posicionamento de cada personagem em relação ao tema central da história.
A partir desse conhecimento, é possível encadear os eventos da trama de forma a criar uma teia de conflitos não apenas entre o protagonista e um opositor, mas entre todos os personagens simultaneamente.
Ainda não ficou claro?
Vamos bolar juntos um argumento bem simples para uma história.
Começando pelos personagens: Regina (a protagonista) e seus três irmãos.
Resumo da história: O pai deles faleceu, e os quatro irmãos devem decidir o que fazer com a casa que o pai tanto amava e onde todos ainda moram.
Vendem a casa da família ou não?
A proposta temática para este debate poderia ser: “Lar é um conceito que a gente leva no coração, não necessariamente um lugar físico.”
Em primeiro lugar, precisamos definir a posição relativa da Regina (protagonista) com relação ao tema.
Para não alterar a posição dos personagens no gráfico, vamos supor que ela discorde do tema e veja nele apenas aspectos negativos.
“Armando o tabuleiro”:
Regina: Não concorda que lar é um conceito (ela acha que é um lugar) e, portanto, vê apenas pontos negativos na proposta de vender a casa.
Irmão 1: Ele concorda com o tema, logo “Lar é um conceito que a gente leva no coração”, portanto tudo bem em vender a casa, mas ele reconhece aspectos negativos nisso e confronta os demais personagens com esses aspectos.
Quem sabe a casa é imensa e está repleta de objetos de valor sentimental para todos e esses objetos terão de ser descartados?
Então ele pode apoiar a venda, mas reconhece como será doloroso se desfazer dessas memórias.
Irmão 2: Ele está com a Regina e discorda do tema, logo, enxerga que lar é um local físico e se opõe à venda da casa, mas ele — diferentemente da Regina — também reconhece aspectos positivos na venda.
Quem sabe a família está enfrentando problemas financeiros e ele é do tipo prático? Nesse contexto, os recursos vindos da venda da casa seriam algo muito positivo, e ele confronta os demais personagens com esse ponto.
Irmão 3: Ele concorda com o tema e vê nele apenas pontos positivos.
Logo, ele não vê problemas na venda da casa — isso não conflitua com a visão interna de lar que ele tem. Em cima disso, ele também só enxerga pontos positivos nessa venda.
Um pouco estranho, certo?
Quem sabe ele é o único que não tinha uma boa relação com o pai e, portanto, não dá a mínima se vão vender a casa e jogar no lixo uma porção de mementos…
O gráfico está pronto: o tema em debate, o ponto em conflito e a postura de cada um em relação a esses pontos estão bem claras. Agora é hora do escritor conceber as sequências dramáticas que vão dar vida a essas oposições.
Nota: a expressão “oposição em quatro cantos” é uma tradução livre do autor deste texto.
Roberto Campos Pellanda escreve ficção fantástica e distopias. As marcas registradas de suas histórias são a ênfase na jornada pessoal dos personagens — acima de tudo, são narrativas que falam de pessoas comuns em situações extraordinárias —, bem como a construção de mundos complexos do ponto de vista político, social e religioso. É autor da série de fantasia Mar Interno, um universo inspirado nas Repúblicas Marítimas do Mediterrâneo. |
Revisão: Luis Felipe Sá e Mile Cantuária
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