O melhor exemplo do que não ser

Antes de ler, verifique se o seu herói não é o vilão.

Representatividade é um tema muito importante e que, felizmente, vem sendo levado mais a sério nos últimos tempos, entregando-nos, assim, personagens mais diversos. Não importa se temos corpos, gêneros ou sexualidades diferentes do normativo, todes nós gostamos e merecemos consumir mídias onde encontramos personagens com os quais podemos nos correlacionar.

Além disso, é apenas normal que busquemos nos personagens da ficção falhas como as nossas. Um personagem totalmente unidimensional, que sempre faz o “certo”, ama até mesmo os seus vilões e possui um coração puro, é previsível e chato. Ninguém é completamente isente de falhas e livre de vícios. Na verdade, são justamente esses traços mais condenáveis que cativam o público, pois apresentam um personagem verdadeiramente “humano”.

Não é de hoje que os escritores e roteiristas tentam apresentar lados e decisões dúbias de heróis, afinal é assim que o público conseguiria se identificar com seres que beiram o divino, mas e quando essa identificação acontece justamente com o único personagem com quem não deveria acontecer?

Para um exemplo mais popular na mídia atual, vamos pegar o Capitão Pátria, da série “The Boys”, um personagem que, de acordo com o próprio Eric Kripke (o roteirista da série), representa o lado mais selvagem da extrema direita, alguém que mantém aliados ao seu lado através de ameaças e intimidações e que, no momento em que eles já não lhe servem ou decidem desafiá-lo, transforma-os em inimigos da opinião pública e esmaga-os com pura força bruta. Não é exatamente difícil entender que ele é o vilão na história. Mesmo que a história em questão apresente outros personagens tomando decisões ruins a todo tempo e que ninguém seja santo, existe um consenso de que ele é o vilão principal. Então por que o Joãozinho insiste em falar que faria igual se tivesse os poderes dele? Por que é que, mesmo após o Alan Moore dar uma entrevista afirmando que você deveria manter distância dele se acha que se parece com o Rorscharch, de “Watchmen”, ainda vemos legiões de fãs endeusando comportamentos claramente reprováveis?

Há quem diga que se trata da falta de capacidade de interpretação de texto, pela crítica não ser algo “escrachado”, ou por não ter uma nota de rodapé dizendo “isso é errado, por favor, não seja assim”. Outros podem apontar que essas pessoas sempre tiveram esses ideais guardados apenas para si, mas, com a representação de tudo o que sempre acreditaram sendo colocada em voga, elas finalmente estariam se sentido confortáveis em assumir o que sempre reprimiram, como se a ascensão e a proliferação de grupos neonazistas fossem culpa de um filme, de uma série ou até mesmo de um ator.

Particularmente não acredito que essas respostas estejam completamente erradas, mas não acho que seja tão simples assim também. Como bem sabemos, nós somos atravessades por uma infinidade de questões sociais e pessoais que moldam não só a nossa percepção de mundo, mas principalmente a nossa percepção de nós mesmes. E uma parte muito importante disso é a autocrítica, que nos dá a capacidade de refletir sobre nossas ações e pensamentos, para que possamos admitir quando cometemos erros ou deslizes a fim de não repeti-los após esse reconhecimento e, assim sendo, nos tornemos pessoas pelo menos um pouco melhores hoje do que éramos ontem, como seria o ideal. No entanto, o que pude observar é que algumas pessoas abrem deliberadamente mão da autocrítica, isso porque o mundo se torna muito mais simples quando você está sempre certe e qualquer oposição a você está mal informada ou é só objetivamente má. Não é que essas pessoas não entendam uma crítica sutil ou até mesmo uma crítica aberta aos seus ideais, é só que essa crítica não passa de uma perseguição vil e até pessoal contra elas, afinal elas estão certas.

Veja que, mesmo que você construa um personagem abertamente fascista e explique cuidadosamente o porquê daquilo ser ruim, tudo o que você pretende trazer à luz como algo negativo é exatamente o que essas pessoas mais idealizam, e elas acham que pessoas como você estão apenas tentando “fazer parecer pior do que realmente é”. Na visão desse tipo de gente, o extremista é você, que não aceita a opinião dela, mesmo que essa “opinião” seja o desejo de subjugar tudo e todes que não pensem como ela. Para pessoas assim, não existe a possibilidade de suas crenças estarem erradas, não existem tons de cinza, existe apenas o desejo ególatra de ouvir somente os seus iguais e erradicar qualquer coisa que vá na direção oposta. Portanto, figuras poderosas e temidas que fazem isso em filmes, séries e livros são rapidamente abraçadas e adotadas por terem a capacidade de concretizar esses desejos. Você não vê camisas com os dizeres “Caveira Vermelha estava certo” ou “Profundo não fez nada de errado”, e existe um motivo para isso, porque, por mais que uma pessoa tenha ideais neonazistas ou não veja nada de errado em abuso sexual, essas figuras são vilões fracos demais ou ridicularizados demais. Personagens assim nunca serão abraçados como o Capitão Pátria foi, não por falta de quem concorde com eles, mas unicamente por não terem a capacidade de impor a todos os demais os seus desejos doentios e visões deturpadas de mundo ideal.

Entenda que não existe nada de errado em você simpatizar com um vilão, existem vilões que foram escritos e criados justamente para que você consiga olhar para eles e ver semelhanças com as suas partes mais sombrias. Existem até histórias que, com o desenrolar da trama, apresentam vilões que têm um argumento válido, mas que acabam tomando atitudes reprováveis para fazer valer seu argumento e perdem, assim, a “razão”. Não há nada mais clássico do que ter heróis e vilões como “dois lados da mesma moeda”. O perigo não é olhar para um vilão e ver traços seus ali, o perigo está em olhar no espelho e enxergar-se como o herói injustiçado e ver todas as pessoas que pensam diferente como as vilãs.

Foto de André Ayala um homem branco de cabelo e barba curtos, usando uma regata branca e uma corrente no pescoço. o fundo é um oceano ou lago.

A. Night Ayala, nascido em 1991, é um escritor carioca e bissexual com um gosto especial por escrever diversos tipos do fantástico, possuindo o livro “Caçadores: O Crepúsculo do Caçador” publicado pela editora Viseu, além de alguns contos publicados na Revista Literatura Fantástica.

Conheça o trabalho dele aqui.

Revisão: Mile Cantuária

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