O horror na literatura nacional

Antes de ler, verifique se todas as portas estão trancadas.

colagem em mosaico com as capas da revista noturna, dezessete mortos, enterre seus mortos e filhas da serpente.

Ah, o horror… Eu adoro histórias de terror em quaisquer mídias, porque acredito ser um dos gêneros mais ricos e com maiores possibilidades da história. O terror, como histórias de medo, tem a grande capacidade de desafiar status quo, compreender o humano e a sociedade e servir como estudo dos medos de uma época. “Drácula”, de Bram Stoker, por exemplo, é um grande comentário sobre o medo do estrangeiro que virá de terras longínquas para tomar a nossa, nesse caso, a Inglaterra do século XIX. “It”, de Stephen King, sempre lembrado pelo palhaço Pennywise, é principalmente sobre os medos infantis e sobre como a amizade pode ajudar a superá-los, mas também tem no início de sua história uma narrativa sobre o medo do desaparecimento e do morticínio de crianças, e de como isso pode abalar famílias inteiras.

Enfim, o horror é um gênero muito subestimado e, de vez em quando, pouco entendido. Não é sobre dar medo, mas sobre discutir o medo como um todo. E, na contemporaneidade no Brasil, consigo me lembrar de algumas histórias de terror que são riquíssimas, seja na própria intenção de assustar, na forma como é feita, estilisticamente falando, seja no subtexto de suas histórias misteriosas e arrepiantes. Adiante, vou indicar quatro histórias que li e reli recentemente, e que tenho certeza de que você, leitor, vai gostar também, se tiver coragem.

capa da revista noturna, ano 1, volume 2. A capa é vermelha com manchas pretas, algumas das quais formam olhos e bocas. Entre as manchas, os nomes das várias autoras.

Hematomancia, de Vitória Vozniak

Começando a lista com o pé direito. A Revista Noturna, cuja intenção é publicar histórias de horror escritas por mulheres, tem, em suas duas edições, contos maravilhosos. Todos arrepiantes, complexos e profundos na sua própria forma. E, desses, um que me chamou muita atenção foi “Hematomancia”, de Vitória Vozniak, publicado na segunda edição, cujo tema eram manchas.

A história acompanha um estranho acontecimento no asilo Escadaria do Céu: as mulheres idosas estão contraindo alguma coisa estranha, que em um primeiro momento acreditam ser uma enfermidade, que faz vazar algum fluido desconhecido. A partir disso, acompanhamos algumas personagens: a enfermeira que detesta idosos, uma policial, uma jornalista e uma das idosas que vivem no Escadaria do Céu.

Além da escrita meticulosa e muito instigante de Vitória, o mistério sobre a estranha mancha é muito bom, principalmente porque ela não está preocupada em tentar explicá-lo. A história é muito mais sobre as implicações e sobre as possibilidades de significado subtextual relacionadas à mancha que, de fato, sobre uma resposta concreta para o acontecimento. Isentando-se da necessidade de explicar qualquer coisa, guiando-se por vários simbolismos e significados através da vida dessas mulheres, a estranheza da história é exposta, ao passo em que te desafia a concluir sozinho o que ela está querendo dizer.

É fenomenal.

capa de filhas da serpente, de Lucas Correa de Lima. O título ocupa grande parte da imagem, e abaixo dele há a ilustração de uma mulher de costas, andando em uma rua escura, com a pouca iluminação em realces vermelhos e uma lâmpada azul

Filhas da Serpente, de Lucas Corrêa de Lima

Lucas fez um certo sucesso no Twitter com suas threads de terror, e suas histórias mais longas também são de boa qualidade, principalmente em relação à maneira como ele traz o medo do desconhecido tão latente ao horror cósmico (que ele trabalha com certa constância, aliás) para a nossa realidade. Lucas gosta de escrever sobre mistérios que vão além da trama e assumem a forma, ou seja, encontrando a estilística do próprio texto. “Filhas da Serpente” não é diferente.

O livro é uma coletânea de dois contos apenas. O primeiro é sobre o diário de uma mulher que, abandonada, infeliz com a vida e quase sempre bêbada, perto do fim do ano acha uma câmera no bar. Ao levá-la para casa, encontra uma foto dela com outra mulher em um lugar desconhecido, na virada do ano que ainda está para acontecer. O segundo conto é sobre uma mulher que, depois de ter abandonado a família e ido embora da sua cidade natal, decide voltar por ter em suas mãos uma foto da sua irmã morta. O seu retorno não é para prantear sobre o falecimento da irmã, mas para impedir que ele aconteça: sua irmã está viva, e aquela é uma foto do futuro.

A partir disso, Lucas trabalha as possibilidades do horror cósmico dentro dos conceitos mitológicos e simbólicos conhecidos sobre divindades ofídicas, com imagens perturbadoras e ótima habilidade de construção de suspense até chegar ao clímax. Mas o que mais me instigou no livro foi que, ao passo que trabalha o significado de Ouroboros (a imagem da serpente mordendo a própria cauda, num simbolismo de infinito) de diversas formas, ele também trabalha esses dois contos na mesma lógica. Eles se entrecruzam, mas nunca sabemos qual deles acontece primeiro. As histórias constroem pontes entre si, e seus atos geram consequências uma na outra. Cria-se uma roda, uma serpente mordendo a própria cauda. É bastante delicioso saborear esse mistério cíclico.

capa de Dezessete mortos, de Nikelen Witter. A capa é bege, com a ilustração da cabeça de uma ovelha com os olhos riscados.

Esse conto faz parte da coletânea “Dezessete Mortos” da autora. Ele segue a história de dois amigos, Cadico e Betão, que em uma viagem para o interior do sul do Brasil ficam sem gasolina no meio da estrada. Acontece que estão numa área que fica perto do Rincão dos Infernos e do Passo das Enforcadas, locais que, para além do próprio nome assustador, carregam suas próprias lendas.

Dos que eu citei aqui, esse é o conto mais simples, no que tange às batidas comuns do gênero. Dois homens perdidos na pista que, em busca de uma maneira de entrar em contato com a sociedade, encontram a figura que carrega o horror. O que me atrai, entretanto, é como Nikelen Witter transmite um senso de realidade e amizade entre esses dois amigos ao longo de sua busca. Ao mesmo tempo que eles não são completamente amáveis, mas também não totalmente odiáveis, seus diálogos e reações são humanos demais. Ao longo do texto, há uma identificação com eles, e o final acaba funcionando muito bem por isso: quando o estranho acontece, torcemos por eles e queremos sua salvação.

É um texto dinâmico que flerta com o horror folclórico. Witter desenha o horror através de uma grande possibilidade dele, que é quase paradoxal: o medo pode ser divertido!

capa de Enterre seus mortos, de Ana Paula Maia. A capa é vermelho escuro, com uma ilustração de uma ave de rapina (falcão? eu não saberia dizer). O título está entre duas cruzes brancas diminutas.

Enterre seus mortos, de Ana Paula Maia

Ana Paula Maia escreve um dos meus romances favoritos da última década, e com certeza o meu favorito da própria autora.

“Enterre seus mortos” conta a história de Edgar Wilson, que trabalha numa firma que recolhe animais mortos na estrada. Acontece que o local em que eles vivem costuma ter um alto nível de incidentes com animais e acidentes no meio da estrada, e o trabalho de Edgar Wilson é coletá-los e levá-los ao moedor de carne. Tudo muda quando Edgar vê uma mulher enforcada no meio da floresta. Sabendo que o destino dela são os abutres, já que a polícia não pode levá-la a lugar nenhum e que o IML, a quilômetros de distância, não pode buscá-la, Edgar Wilson aproveita sua folga para levá-la até um lugar onde possa deixar seu cadáver.

Ana Paula Maia escreve um livro bem kafkiano: a firma de Edgar Wilson tem como objetivo unicamente recolher animais mortos. Pouco importa se há um cadáver humano no meio da estrada. Há regras inúmeras que eles precisam seguir para manter o emprego, burocracias em todas as esferas públicas e privadas dentro do texto que desumaniza os cadáveres humanos.

A maioria das histórias que lemos, de terror ou não, quando trata da morte, pensa muito no seu sentido espiritual. Sobre nossa alma, sobre nosso espírito e sobre quem somos até o momento em que morremos. “Enterre seus mortos” faz uso da sua burocracia e carnalidade para trazer à tona algo inerente à morte: o que fica para trás, o cadáver. Se o corpo vazio e putrefato é deixado para trás e completamente abandonado de personalidade, ele passa a ser um objeto que vai apodrecendo conforme o tempo passa. Ao nos lembrarmos dos mortos, nos lembramos de suas vidas, de quem eles são, de como eram quando vivos. Quando pensamos nas suas mortes, pensamos em suas almas. Agora os seus corpos se tornam restos. Sua carne, sangue, ossos, órgãos, tudo isso é ignorado, torna-se alimento para vermes e abutres.

“Enterre seus mortos” é gráfico. Muito gráfico. Há uma cena no final que, sempre que releio, me deixa de estômago embrulhado. Ao tratar esses corpos como sobras, levados de um lado ao outro como objetos desumanizados, as maiores violências e vilipêndios possíveis são feitos aqui. E ainda há um estranho humor em alguns momentos, carregado de um completo desrespeito para com cadáveres, animais e humanos.

A escrita seca da autora, que combina com a personalidade introspectiva de Edgar Wilson, transforma esse no livro mais violento desta lista. Boa sorte ao lê-lo.

Acredito que esta é uma lista bem variada, para todos os tipos de gostos do horror. Do mais sangrento ao mais psicológico, ler os quatro indicados é uma viagem profunda aos horrores da literatura brasileira contemporânea. Como eu disse no início, leia se tiver coragem… e divirta-se!

Foto de Roger Portela, um homem negro de pele clara com cabelo encaracolado até a altura do ombro/queixo, usando uma camisa social de manga curta e uma mochila, olhando para longe da câmera com os olhos semicerrados. O fundo parece ser uma árvore coberta de musgo.

R.R. Portela, morador do RJ, divide seu tempo entre seu trabalho, sua escrita e ser pai. Apaixonado por fantasia, você sempre vai encontrá-lo em mundos criados por ele ou por outros. Você pode acompanhá-lo no blog Cozinhando Mundos.

Revisão: Mile Cantuária

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