Nas batidas que desfiguram nosso ser: “Desfiguração”, de Raquel Setz

Antes de ler, verifique se o seu cotidiano não se desfigura no insólito.

Banner com o título “Nas batidas que desfiguram o nosso ser”. No lado esquerdo da imagem, está a capa do livro “Desfiguração”, de Raquel Setz, enquadrado numa moldura que imita um Kindle. A capa do conto mostra uma vassoura de cerdas vermelhas sobre um chão de madeira, e o título e nome da autora são repetidos em letras brancas várias vezes. Abaixo do título, há uma foto de Roger Portela, homem negro de cabelo cacheado até os ombros. O fundo da imagem é uma versão desfocada da capa.

Ao abrir um livro de contos, o que me interessa, tanto quanto ler os textos em si, é compreender a liga que os une. Costumo dizer que um livro de contos é como um álbum musical: cada música deve funcionar sozinha, claro, mas há uma beleza única no que as une, na sua lógica, nos motivos de terem sido colocadas naquela ordem e não em outra, nas suas batidas ritmadas, no que querem dizer unidas.

Desfiguração”, de Raquel Setz, me fez pensar o tempo todo nessa unidade, porque todos os contos — ainda que cada um da sua maneira — carregam uma sensação de crise existencial, de reflexão ao olhar para trás; todos trazem o insólito na vida cotidiana através de algo, sejam memórias — confusas por si só, por já serem algo passado que só existe em nossa mente —, sejam objetos — no conto “Magic Help”, um caderno com textos estranhos modifica o cotidiano de uma empregada doméstica, enquanto em “Pelúcia” um pequeno objeto, um cachorrinho de pelúcia específico, torna-se um dos objetos de anseios que une essas mulheres reunidas em um grupo insólito.

A liga principal que une todos esses textos é a de reflexão existencial. Uma sensação lúgubre, um sabor acre que fica na boca ao longo de cada um dos textos. Raquel não escreve contos de terror propriamente ditos, e ainda assim a sensação que fica é bem mais assustadora que qualquer monstro escondido nas sombras.

Isso porque o sentimento que se mantém é o de compreensão da nossa existência, daquilo que nos torna quem somos, nossas identidades, e de como elas podem ser formadas através de acontecimentos de um passado — que se relacionam a nós diretamente ou não — ou através dos nossos desejos, ânsias. Nossos horrores, desesperos.

E, para completar a crise existencial inerente a cada um dos textos, a morte ronda todos, de diversas formas, como se para definir nossa pequenez. Não diante de algo maior, nada cósmico, mas apenas para refletir como somos passageiros e definidos por ela.

No conto “A Despencada”, por exemplo, o suicídio de uma noviça modifica toda a existência das crianças que estudam em um colégio católico, e também o próprio colégio. Em “Anatomia - um estudo em oito partes”, diversos pontos de vista narram como a morte de uma mulher dada por engano interfere em existências diversas.

Mas, de todos, o que mais brilha para mim é “Bonecos satânicos, hiperinflação e gated reverb”. De longe, meu favorito de todo o livro. Narra a história de uma mulher que, ao revisitar a casa da sua falecida mãe para fazer um inventário e se livrar das coisas que não vai mais precisar, reencontra um VHS de uma festa do passado. Conforme assiste à fita diversas vezes, ela vai se distorcendo, transformando não apenas o físico, nesse caso, a própria fita e o que pode ser assistido através dela, mas também as memórias de infância. Ao mesmo tempo, Raquel discute sobre como nossa memória nostálgica dos anos oitenta — onde a infância da personagem ocorreu — é distorcida e não real perante o que foi vivido de verdade naqueles anos. É um texto profundo, assustador da sua própria maneira e uma ótima reflexão sobre como encaramos nosso passado e o passado do mundo, o zeitgeist dos anos oitenta, nossa relação com memórias do passado.

E, claro, não posso finalizar este texto sem falar de “Magic Help”, talvez o único conto verdadeiramente de horror desse livro, em que Raíssa, empregada doméstica que trabalha em um aplicativo chamado Magic Help, é contratada para cuidar de um apartamento e, sem nunca ver sua “patroa”, vai percebendo que há algo de errado com a mulher, com o apartamento e principalmente com um caderno comum de 96 folhas que ela guarda em um armário. A realidade e o cotidiano se distorcem de maneira única aqui, e o que se mantém é uma impressão caleidoscópica, de verdadeira desfiguração da existência.

Raquel Setz escreve muito bem. Uma escrita simples, que apresenta suas histórias sem muitos floreios e sem se preocupar em falar mais do que deve. Alguns contos podem parecer sem respostas o suficiente, ou confusos, mas essa decisão é pensada para que o choque do texto se mantenha mais forte. É impossível ler qualquer um dos contos e não ficar baqueado após o seu final. Voltando à comparação com um álbum musical, é como se cada música terminasse com uma batida chocante e um corte brusco, em que cada canção te balança internamente, não fazendo você dançar, mas te fazendo refletir. E essa sensação, esse baque, esse choque, vai evoluindo, tornando-se mais presente, em uma eterna crescente, até o caos final em “Magic Help”.

Com certeza, uma leitura inesquecível.

Foto de Roger Portela, um homem negro de pele clara com cabelo encaracolado até a altura do ombro/queixo, usando uma camisa social de manga curta e uma mochila, olhando para longe da câmera com os olhos semicerrados. O fundo parece ser uma árvore coberta de musgo.

R.R. Portela, morador do RJ, divide seu tempo entre seu trabalho, sua escrita e ser pai. Apaixonado por fantasia, você sempre vai encontrá-lo em mundos criados por ele ou por outros. Você pode acompanhá-lo no blog Cozinhando Mundos.

Revisão: Mile Cantuária

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