E assim me tornei leitor por sua causa

Antes de ler, verifique a quem o título se refere.

Eu tinha cinco anos de idade quando meus pais me colocaram na escola: os primeiros passos da minha alfabetização (que ocorreria de verdade aos 6 anos). Em alguns meses, aprendi a ler. E a coisa mais legal que eu podia fazer com minha habilidade recém-adquirida era pegar alguns livrinhos infantis e entender a história. Eu tinha alguns com historinhas bíblicas em casa e, na escola, tinha um monte de histórias variadas. Minha favorita era “Bicudo”, uma história sobre um pernilongo — que morria no final. Eu ficava com dó, mas ninguém merece pernilongos!

Cresci numa família cristã protestante e vivi a contradição entre o incentivo à leitura e o desincentivo à literatura em geral. Era importante ler a Bíblia e os livros da igreja e, como aprendi a ler fluentemente bem cedo, minha família e as pessoas da igreja ficaram empolgados com o fato de eu ser uma criança que já lê tanto. “Projeto Sunlight” (June Strong), “Os dinossauros: quando existiram e por que desapareceram” (Ruth Wheeler e Harold G. Coffin), e “África: lembranças de uma missão” (Bob Prouty) foram meus primeiros livros não necessariamente infantis. Não havia tantas obras literárias que fossem aprovadas pela igreja, então minha formação como leitor começou de verdade na escola. E por acidente. 

Aos sete anos, uma professora interpretou minha recusa a seguir as instruções acerca do caderno como dificuldade de aprendizagem, então me colocou na “aula de reforço”, que era basicamente um momento reservado para alfabetizar alunos que ainda não sabiam ler. Foi uma tremenda injustiça, e eu achava tudo muito chato, mas em uma dessas aulas nos levaram à biblioteca — que logo se tornou meu lugar favorito da escola. Tinha tantos livros, e nós ainda podíamos escolher e pegar emprestado!

Claro que comecei com o básico: gibis da Turma da Mônica. Mas daí li contos de fadas infantis, alguns quadrinhos do Tio Patinhas, e também “A Floresta da Brejaúva” (Francisco Marques), que era um livro muito engraçado.

Avançando a história, porque existe aqui um contador de palavras (e não quero tomar tanto do seu tempo), aos 10 anos fiz a quarta série (atual quinto ano) em uma escola sem biblioteca, mas conseguiram, através de doações dos pais dos alunos e pelo Plano Nacional do Livro Didático (PNLD), um bom acervo de livros infantojuvenis. As professoras liam os livros e faziam muita propaganda sobre como a história deles era legal, então toda sexta-feira podíamos escolher um para pegar emprestado por uma semana. Também havia os projetos literários, na época era a Mala Viajante (uma mala cheia de livros que ficava viajando para a casa dos alunos, e cada um escolhia um livro para ler e fazer uma apresentação na sala). 

E assim me tornei um leitor assíduo. Li “A bolsa amarela” (Lygia Bojunga), a adaptação de Walcyr Carrasco de “Os miseráveis” (Victor Hugo), “Tom Sawyer, Detetive” (Mark Twain), “A ilha do tesouro” (Robert Louis Stevenson), “Bruxa Onilda vai à festa” (Enric Laurella e Roser Capdevila), “O fantástico mistério de Feiurinha” e “O mistério da fábrica de livros” (Pedro Bandeira), e o meu livro da Mala Viajante: “Caminho de volta” (Luís Fernando Pereira), da coleção Vaga-lume Júnior. 

A partir do sexto ano — em uma escola cuja biblioteca contava com muitos livros —, mantive meu hábito de um livro por semana durante toda a adolescência. Muita coleção Vaga-lume, e também teve a série “Os Karas”, de Pedro Bandeira, começando por “A Droga da Obediência” e seguindo por mais cinco livros que me deixaram fluente em cómberdinisgomber ventermenterlhomber; também os livros de Sherlock Holmes, “Um estudo em vermelho”, “O signo dos quatro” e “O cão dos Baskerville” (sir Arthur Conan Doyle); “Quem matou o livro policial?” (Luiz Antonio Aguiar), que abriu as portas para Agatha Christie com “Assassinato no Expresso do Oriente”, “Cai o pano” e “E não sobrou nenhum”; minha fase fã de piratas com “O corsário negro” (Emilio Salgari)… Também estava lá lendo Rick Riordan com as séries “As crônicas de Kane”, “Percy Jackson e os olimpianos”, e “Heróis do Olimpo”. E claro, chegou a hora de conhecer os clássicos “A moreninha” (Joaquim Manuel de Macedo), o livro que me deixou “Pera aí, eu gosto de romance?” E também os de Machado de Assis: “Memórias póstumas de Brás Cubas”, que me arrancou muitas risadas; e “Dom Casmurro”, que fez com que eu me apaixonasse por Capitu (NÃO TRAIU, MAS DEVERIA TER TRAÍDO… Ninguém lembra que foi Bentinho quem quis dar uns pegas na Sancha, né?). 

Certo, já chega de te encher com lista de livros. Eu li muito. O importante é que eu só pude ficar orgulhoso de ler as 752 páginas do volume único de “As Crônicas de Nárnia” (C. S. Lewis) em uma semana porque o livro estava disponível na biblioteca da escola. A minha fase menos leitora foi quando me formei no Ensino Médio. Não tinha livros literários na biblioteca da faculdade e, puxa vida, livros realmente são muito caros! Principalmente para um jovem adulto que mal tinha dinheiro para o xerox da faculdade.

Não sei qual é a sua história com livros. Não sei se você teve uma família leitora que te enchia de livros ou se, como eu, teve acesso a bibliotecas escolares e professores que incentivam a leitura. Mas sei que é muito difícil conseguir pagar 80 reais em um livro. Também sei que os meios ilegais que algumas pessoas encontram também trazem seus problemas (diagramação horrível, dificuldade de leitura, etc). A verdade inconveniente é que é bem difícil ser leitor no Brasil.

Também tem um outro lado da história. A partir do sexto ano, quando tive acesso àquela biblioteca cheia de livros, também estudei com colegas que não tiveram formação prévia enquanto leitores. Não culpo os pais: a verdade é que não temos exatamente uma cultura do livro estabelecida no Brasil (para mais detalhes, recomendo um artigo da economista Bárbara Morais intitulado “Dinâmicas sociais e a construção de preferências de consumo: o mercado de livros no Brasil”).

Também não culpo os professores: já são uma categoria extremamente precarizada. Muito trabalho e pouco salário, eu não teria coragem de apontar o dedo na cara de ninguém e dizer “por que você não transformou seus 80 alunos por ano letivo em leitores enquanto planejava aulas, cuidava de dificuldades individuais e lidava com demandas da supervisão e dos pais?”

Culpo, porém, o poder público. Claro que podemos falar das condições socioeconômicas da classe trabalhadora em geral (que é o universo de pessoas que eu conheço) e também da desvalorização de professores. Mas vou destacar o descaso que existe com bibliotecas.

Desde a biblioteca escolar, espaço importante para mim, não me recordo de conhecer profissionais da biblioteconomia. A biblioteca da escola tinha, sim, um bom acervo, mas as bibliotecárias quase não conheciam o acervo para orientar bem os alunos (não as culpo, culpo o Estado que não contratou profissionais competentes para a função, dando-lhes a devida valorização). 

Piora quando vamos para as bibliotecas públicas. Claro, a SP Leituras (Associação Paulista de Bibliotecas e Leitura) com o aplicativo BibliON nos tem oferecido um ótimo serviço. Mas o Brasil é muito maior que São Paulo, e deveria sim existir algo como um Sistema Único de Bibliotecas, ou bibliotecas federais espalhadas pelo país e ajudando a manter as bibliotecas municipais.

Tenho muita saudade da infância na escola, quando eu tinha acesso à biblioteca. Sonho com o dia em que bibliotecas serão comuns em toda parte. Talvez nem todos encarem um livro por semana… mas imagina só como não seria legal?

O título se refere a bibliotecas. Se você verificou antes de ler, fica aqui o meu aplauso.

fotografia de rosto de Ícaro de Brito. Ele é um homem negro de rosto redonto com barba e bigode curtos e cabelo encaracolado, está usando uma camiza xadrez vermelha.

Ícaro de Brito, serial reader, escritor de romance, fantasia e ficção cientifica, violinista amador, marxista-leninista, é idealizador do Guia para Estudar Escrita Criativa na Internet e psicólogo nas horas vagas. Escreve ocasionalmente no blog Rascunhos Abertos e tem dois contos publicados na Faísca, você pode ler um, e ouvir o outro no podcast Assovio.

Revisão: MIle Cantuária

E você, como foi sua trajetória com a leitura? A seção de comentários fica aberta, e adoraríamos ouvir suas opiniões sobre o artigo!

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