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Ler ou consumir
Antes de ler, verifique por quê que é que você está lendo o que você está lendo e, se não gostar do motivo, se pá vai ler outra coisa.
No dia em que se conheceram na prisão da Fortaleza de If, Edmond Dantès e o abade Faria conversaram, entre outras coisas, sobre a leitura:
— Minha biblioteca em Roma tinha cerca de cinco mil volumes — diz o abade, na tradução de André Telles e Rodrigo Lacerda. — Em virtude de os ler e reler, descobri que com cento e cinquenta obras bem escolhidas temos, se não um resumo completo dos conhecimentos humanos, pelo menos tudo que é útil ao homem saber. Dediquei três anos de minha vida a ler e reler esses cento e cinquenta volumes, de maneira que os sabia praticamente de cor ao ser preso. Na minha cela, com um ligeiro esforço de memória, lembrei-as integralmente. Assim, poderia recitar-lhe Tucídides, Xenofonte, Plutarco, Tito Lívio, Tácito, Estrabão, Jornandès, Dante, Montaigne, Shakespeare, Spinoza, Maquiavel e Bossuet. Estou citando apenas os mais importantes.
Na concepção do abade (que, afora este deslize, é uma das minhas personagens favoritas d’O Conde de Monte Cristo), a leitura é a chave para o “conhecimento útil” — e repare que ele aí não está falando de literatura científica necessariamente; na lista dos “mais importantes” do abade, como se vê, figuram poetas e dramaturgos junto de filósofos e historiadores. É uma concepção burguesa da leitura que ainda não foi de todo superada, apesar de hoje estar certamente mais rebaixada: se o abade Faria mandava Dantès se ater à leitura de Tucídides, Dante e companhia, leitories preocupades com o “conhecimento útil” do nosso século preferem postar selfies com variantes de “Guia f*dido!”, “Os três Segredos dos Investidores-Cabras”, “O karatê tântrico do Gestor de Pessoas” e biografias de bilionários.
Você, leitorie queride da VAL, provavelmente não se deixa seduzir por este estilo “utilitário” de leitura. Ainda assim, outra pressão se abate sobre leitories do século XXI, para além da leitura “utilitária”: a leitura-consumo. Não é segredo pra ninguém que, neste nosso tempo esquisito, o mercado absorve praticamente todas as esferas da nossa vida, e a leitura obviamente não sairia incólume disso.
Por um lado, a pressão da leitura-consumo se faz sentir muito literalmente no plano comercial: cada série de livros de sucesso vai receber três relançamentos de luxo, um deles com capa feita de pele de bebê foca de verdade!, e fãs de verdade jamais ficariam de fora, hein? Para além dos livros, mercadorias correlatas: a marca de sucesso de uma “franquia” é virar filme, camiseta, caneca, parque de diversões… Ler sempre foi um negócio caro, e, se a invenção das bibliotecas públicas e a massificação da imprensa e, depois, da internet ajudaram a facilitar a vida de quem não tem grana, ainda assim o mercado faz um esforço para compensar essa democratização e manter suas margens de lucro.
Não só no campo do produto, essa pressão também se faz sentir na “performance da leitura”: leitories do século XXI não apenas precisam ter a edição de capa de bebê foca e as canecas de todas as sagas do momento, como também precisam estar em dia com as leituras da vez, manifestar sua opinião em quatro redes sociais e dois aplicativos diferentes, fazer postagens, gravar vídeos, interagir nas páginas das editoras e arranjar briga por causa de passagens problemáticas™ dos livros. As estratégias de publicidade das editoras e empresas de entretenimento catalisam e capturam essa vinculação entre leitura, identidade e consumo de um jeito que fica difícil para leitories conceberem outra forma de ler. Afora a interferência do mercado, eu admiro a empolgação, e longe de mim ser aqui a pessoa velha gritando pros céus reclamando “dessa juventude de hoje e seus aplicativos de leitura”;…
Nota: Inclusive porque pessoas velhas são perfeitamente capazes de cometer leitura de consumo — só que daí o mercado se esconde por detrás da “cultura” ou da “literatura de verdade” (como se essas duas não fossem perfeitamente comodificáveis).
…mas eu tenho pra mim que uma das bonitezas da literatura é justamente esse vaivém entre a experiência individual e a experiência de conexão profunda entre seres humanos que ela proporciona. No entanto, se o cerne da experiência de leitura de uma pessoa é o consumo, se ela foi ensinada a ler apenas nos paradigmas da leitura de consumo e de performance, sua experiência corre o risco de ir se homogeneizando com aquilo que o mercado dita.
E, veja só, longe de mim também ficar dizendo o que as pessoas podem ou não ler — e o quanto elas devem “resistir” ao que o mercado literário impõe; eu estava não tem um mês lendo um livro derivado de outra série de livros do George R. R. Martin, pelo amor de Deus. O que eu quero te dizer…
Nota: Ou, talvez, lembrar; ou, talvez, você nem precise do lembrete.
… querida pessoa leitora, é que, apesar das pressões do mercado de trabalho pra lermos o “útil”, e das pressões do mercado literário pra consumirmos o “imperdível”, a humanidade tem lido e contado estórias entre si por muitos motivos mais interessantes ao longo dos últimos trezentos mil anos:
A Ursula K. Le Guin tem um texto bonito sobre “A Teoria da Bolsa de Ficção”, em que ela defende um modelo de estória em que vamos recolhendo pedaços da vida e botando na bolsa —- quem sabe, então, podemos tentar ler assim, como quem percebe no texto pedaços da vida, ou quem usa os pedaços da vida que há no texto pra encontrar sentidos no que vivemos nós mesmas;
O Antonio Candido nos lembra, por sua vez, que o tempo é o tecido da vida — a leitura é, portanto, por direito nosso, uma forma pela qual podemos escolher viver o tempo precioso que temos;
Dinarzade todas as noites pedia outra e outra estória, como forma de preservar a vida da irmã — mesmo que não estejamos nós mesmas nas mil e uma noites, as estórias que lemos podem nos proteger a vida de outras formas, como um sopro de esperança num momento difícil, como uma dor compartilhada, como uma risada de que precisávamos;
Os gregos faziam churrascos imensos pra ouvir a estória de como seus tataravós passaram dez anos brigando do outro lado do mar por conta de um mal-entendido — e aí nos ensinaram também a ler estórias como quem quer saber o que faziam os nossos tataravós, quais eram os troianos de seu tempo, mas também a ler estórias em conjunto, compartilhando o que lemos com outras pessoas importantes para nós.
Eu tenho pra mim que a leitura é uma das formas por excelência de conexão humana,…
Nota: Na verdade, mesmo a leitura utilitária e a leitura-consumo acabam nos conectando a outras experiências humanas na Terra — só que numa versão mais pasteurizada.
…e que toda grande estória, ou, pelo menos, toda estória que nos marca, nos ensina a nos conectar — e, portanto, a ler — de um jeitinho diferente. Aprender a interrogar o que nos trouxe a uma determinada estória, e o que estamos levando dela, deliberadamente, é não só uma ferramenta para resistirmos à pressão do mercado ou de outras forças de dominação cultural, é um passo importante no nosso amadurecimento enquanto leitories, e enquanto seres humanos.
Yuri Cortez comete todo tipo de texto com gosto, exceto os acadêmicos e os autobiográficos. Além da VAL, é facilmente encontrável no TalvezBlog e no YouTube, e aleatoriamente encontrável em outras revistas e saites por aí, quem sabe... |
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