Fantasia e combate ao fascismo

Antes de ler, verifique se os antagonistas da história não pertencem a uma cultura monolítica criada apenas para representar o conceito abstrato de maldade.

Estamos em guerra. Uma guerra pela essência daquilo que amamos.

Tá, desculpem a abertura grandiloquente, mas não estou mentindo. Este texto não vai pedir que você monte guarda nas ameias de um castelo, nem que se aliste no exército (na verdade, é bem o contrário disso). Estou falando de uma luta contra o fascismo no campo da ficção fantástica, e ela começou há muito tempo, embora talvez só tenha se tornado mais perceptível lá em meados de 2018. Você sabe do que eu estou falando, passou pelo inferno do último governo e sobreviveu, imagino que a muito custo.

O combate ao fascismo e aos ideais de intolerância da extrema direita se dá em muitos campos de batalha, porque esse discurso se propaga em qualquer lugar onde haja um vácuo ideológico. Aqui, vou focar na batalha relativamente obscura pela literatura de fantasia. Se você escreve ou lê, vai entender a importância de não ter seu gênero literário associado a ideologias de ódio e violência.

Quem está disputando a literatura fantástica, afinal? Bem, de um lado, a extrema direita, que você pode chamar como quiser, mas eu os chamo de fascistas, porque é isso que são; e, de outro, todo o resto de nós. Veja, qualquer que seja sua posição política, estou me colocando ao seu lado nessa disputa. A não ser, é claro, que você se identifique com o fascismo (dica: se você se incomoda com o termo “antifascista”, você provavelmente é um fascista e devia ter parado de ler dois parágrafos atrás).

O fascismo é uma ideologia insidiosa e propaga suas ideias ocupando todos os espaços possíveis. Olhe para a internet, jogos eletrônicos, cinema e variados gêneros musicais, você verá discursos de extrema direita sendo propagados. Se tiver coragem, vista uma roupa de proteção e abra uma caixa de comentários sobre qualquer novo lançamento de cultura pop, você verá do que estou falando. Ódio contra minorias, racismo, homofobia, transfobia, visões maniqueístas de mundo, intolerância religiosa, incitação à violência, militarismo. A escrita fantástica é ampla demais para conter uma visão política única, e frequentemente acaba caindo em lugares-comuns moralistas, tornando-se o campo perfeito para o fascismo se proliferar, já que esse tipo de discurso se difunde onde houver brecha.

Quantas histórias fantásticas você já leu em que a realidade é descrita em termos maniqueístas? O protagonista encarna o bem e o antagonista encarna o mal, e o final envolve alguma espécie de confronto em que a bondade, a justiça e a moral triunfam sobre a iniquidade, a crueldade e a corrupção. Consegue pensar em alguma? Que tal “O Senhor dos Anéis”, “As Crônicas de Nárnia” ou, quem sabe, “Harry Potter” (cuja autora é, vejam só, uma pessoa horrível e cheia de ódio, mas que se considera a campeã valorosa do bem)?

Podemos pensar em outro tipo de obra: as mais voltadas ao sombrio, onde o mundo é terrível e todo o tipo de violência contra mulheres e outras minorias é praticada na obra sem nenhuma criticidade. Decisões criativas tomadas apenas para “dar o tom” de uma fantasia sombria “muito adulta”, ou, usando a desculpa mais esfarrapada e sem sentido de todas, “porque naquele tempo era assim”.

Inclusive, a ideia de “naquele tempo” é muito usada pelo fascismo. O passado é glorificado e falsificado por eles com uma aura mítica, de perfeição imaculada, que teria sido violado e “degenerado” pelos grupos que a ultradireita aponta como inimigos (judeus, ciganos e outras minorias étnicas, religiosas e sociais). A fantasia, por construir mundos alheios à história, mas fortemente inspirados por ela, vira matéria-prima de propaganda, por correr o risco de perpetuar noções falsas sobre o passado real. Um exemplo que preciso citar, porque se trata de um autor que me inspira, embora eu esteja ciente de suas falhas, é o Robert E. Howard. Os contos de Conan, do Rei Kull, de Solomon Kane e de outros heróis de um passado fantástico se assemelham muito ao ideal de “perfeição” e de “superioridade” que a ultradireita propaga ao defender a existência de superioridades naturais de raça e gênero, podendo se tornar figuras emblemáticas de movimentos fascistas.

Essas questões de bem e mal, de valores expostos de forma estritamente binária, de remissão a um tempo passado mítico, no qual as coisas eram melhores, ou que pelo menos merece respeito em nome de um “rigor histórico” estranho, são ferramentas perfeitas para se espalhar discursos de ódio. Voltemos a Tolkien, onde povos inteiros, como os orcs e os haradrim, são sempre maus o tempo todo, sem nenhuma nuance (esses últimos, inclusive, descritos como uma caricatura pouco elogiosa de povos da Ásia). Ou às Crônicas de Nárnia, onde os protagonistas são auxiliados e instruídos por uma versão leonina do próprio Jesus Cristo, afastando qualquer dúvida de sua superioridade moral sobre os antagonistas, que em alguns volumes da obra representam caricaturas de povos islâmicos.

Não estou aqui querendo jogar Tolkien ou C. S. Lewis na fogueira (a J. K. Rowling eu jogo, está viva e não esconde seu ódio de ninguém), mas apenas demonstrar que os maiores expoentes da fantasia têm em suas obras questões que, se não discutidas e exploradas criticamente, tornam-se matéria-prima para fomentar o extremismo, sob a forma de uma ideologia que prega o monopólio sobre a bondade e a virtude, condenando o diferente ao eterno papel de mal a ser eliminado ou de vítima corrompida a ser recuperada.

Se você lê muita fantasia, talvez ache estranha minha perspectiva. Afinal, há um movimento crescente de valorização da diversidade, de experimentação e, principalmente, de dar voz a autores de grupos minoritários dentro da literatura fantástica. Essa nova tendência, embora positiva, ainda é recente, e por isso conhecida apenas de quem, como nós, está muito mergulhado no universo literário. Para quem não tem o hábito de buscar leituras novas, lançamentos, e acompanhar os cenários tradicional e independente de vanguarda, a fantasia ainda é o território de Rowling, Tolkien, Lewis e outros nomes antigos e estabelecidos há décadas. O público geral enxerga a fantasia por esse prisma, e, assim, aqueles que tendem a se aproveitar das falhas nas obras desses autores para sustentar ideias reacionárias têm vantagem na guerra de narrativas sobre quem se apoia em movimentos relativamente obscuros ao público geral.

Você certamente já se deparou com gente nas redes sociais reclamando furiosamente de adaptações de fantasia que escolhem diversificar seus elencos com atores de múltiplas etnias, mudar o gênero de personagens para equilibrar a quantidade de papéis masculinos e femininos, ou qualquer mudança mínima para atualizar uma obra antiquada em sua representação das diversas experiências humanas. Esse é um campo de disputa ferrenha, e que não raro é dominado por esses grupos.

Então, como leitores e autores que amam a literatura fantástica e que não desejam vê-la associada ao fascismo, reacionarismo e outras formas de ódio conservador, o que podemos fazer? A primeira coisa é nos posicionarmos de forma clara. Rechaçar o fascismo, a intolerância e os discursos de exclusão, especialmente quando se apoiarem em obras de caráter fantástico. Priorizar leituras diversas em vez de clássicos problemáticos, buscar autores que desde o início do gênero usam a fantasia como ferramenta de crítica ao status quo, como Úrsula Le Guin, Kafka e outros que transformaram a fantasia em literatura de resistência. Se você ainda não quiser abandonar seus queridinhos, é necessário ler essas obras “clássicas” com olhar crítico, reconhecendo, apontando e discutindo seus problemas, como a falta de personagens femininas em “O Senhor dos Anéis”, ou a representatividade estritamente casual, ou até mesmo “retroativa”, em “Harry Potter” e obras derivadas.

Para quem escreve, não pretendo prescrever uma cartilha. Devemos escrever o que nos interessa, mas, além do posicionamento firme e público, podemos examinar nossas obras e referências em busca desses detalhes problemáticos, herdados dos livros que amamos apesar de seus problemas, e refletir criticamente sobre eles. A sua história tem inimigos compostos de uma única espécie de criaturas estruturadas em uma cultura monolítica dedicada ao mal? Nela, o herói moralmente virtuoso representa a soma de todos os valores “corretos”, contra o vilão que é um espelho negativo daquilo que o bem deve representar? Quantos de seus personagens são mulheres? Quantos não são brancos, ou não são héteros, ou não são cisgênero? E qual o papel de cada personagem na trama? Tudo isso pode ser alterado, trabalhado com mais cuidado, para representar de forma mais sensível temas complexos.

É importante começar a pensar sobre isso, discutir o assunto com colegas autores, comentar sobre o tema em leituras beta, para iniciarmos um movimento significativo de ocupação do espaço do fantástico. Fazer isso, mesmo que de forma vagarosa, protege, de certa forma, nosso gênero literário favorito, pois aumenta a consciência sobre os perigos das ideologias de extrema direita e dificulta que grupos mal-intencionados tomem de assalto aquilo que amamos, e associem a literatura fantástica a toda sorte de discursos odiosos.

Vocês podem achar que chamar isso de guerra é exagero, mas ainda mantenho que precisamos nos atentar aos discursos que têm sido produzidos ao redor da literatura fantástica. Tenho certeza de que, se começarem a prestar atenção, perceberão que estamos circundados desses estereótipos negativos, que ameaçam tomar de nós a essência do que amamos ler e escrever, transformando-a em ferramenta de ódio. Precisamos pensar, discutir e nos atentar a isso, no mínimo, para que possamos continuar e fortalecer a tendência de valorização de vozes minoritárias, impedindo que grupos mal-intencionados capturem o discurso produzido sobre a literatura de fantasia que tanto amamos.

Foto de M. P. Neves, um homem branco de cabeo bem comprido e cavanhaque. Ele usa óculos e uma caiseta preta, e olha bem sério para a câmera.

M. P. Neves, autor da trilogia “A Ruína de Noltora” (Amazon), não acredita em finais felizes e bebe um copão de lágrimas de leitories todo dia de manhã. Quando ninguém está olhando, escreve histórias fofas como “Música Roubada” (Amazon). Os finais ainda são trágicos.

Lembre-se que a seção de comentários fica aberta, e adoraríamos ouvir suas opiniões sobre o artigo!

Reply

or to participate.