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Em águas profundas: entrevista com Lis Vilas Boas
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Lis é do interior do estado do Rio de Janeiro, onde o rio literalmente faz a curva. Além de escritora de fantasia e ficção científica, é também oceanógrafa e navega entre mares reais e imaginários. Vive com o marido entre o Rio de Janeiro e muitos lugares do Brasil, é uma grande apreciadora de café e jujubas vermelhas, e prefere ocupar as mãos para deixar a mente livre. Suas obras incluem os contos “Marea Infinitus”, “As sete mortes de uma sereia”, “Contenção”, a novela seriada “Areia e Pólvora” e seu romance “Garras” a ser publicado pela editora Rocco este ano.
Ana: Lis, vou começar pedindo pra você se apresentar. Como eu sei que pergunta de tema livre é bem difícil, vou te dar algumas coisas pra delimitar: Lis Vilas Boas, onde mora, do que se alimenta? Qual o seu dinossauro favorito? A gente sempre reclama que ninguém pergunta para o adulto o seu dinossauro favorito, então… Conte um pouco sobre você, Lis.
Lis: Além de escritora, eu sou oceanógrafa e pesquisadora. Eu atualmente moro no Rio de Janeiro. Eu gosto de jujubas vermelhas, bebo mais café do que eu deveria, e eu não tenho um dinossauro favorito, mas, em minha defesa, eu tenho outra criatura pré-histórica favorita: o basilossauro, que é um dos ancestrais das baleias.
Ana: E agora, entrando num assunto que interessa mais o público da Val, o que você gosta de ler, Lis?
Lis: Ficção especulativa, no geral, é onde eu me sinto em casa. Com uma tendência mais forte pra fantasia. Atualmente, eu tenho gravitado mais pra fantasia urbana.
Também sou uma leitora ávida de romances. O romance romântico. De todo tipo, também. Seja contemporâneo, seja de época, histórico… não tenho preconceitos com romance. Na verdade, o romance de época, como é um cenário tão distante e tem restrições sociais tão distantes das nossas, muitas vezes parece um pouco de fantasia pra mim. Então eu quase chamo romance de época de fantasia às vezes.
De vez em quando, eu leio também não ficção. Eu gosto de ler sobre assuntos que me interessam de modo geral. Agora, inclusive, eu tô lendo um livro sobre o Jogo do Bicho.
Estou gostando bastante, porque eu tô aprendendo não só sobre o Jogo do Bicho, mas também várias informações históricas sobre a cidade do Rio de Janeiro. Tem uma mistureba de curiosidades que eu nunca imaginei que eu ia descobrir só lendo sobre o Jogo do Bicho.
Ana: É pesquisa pra alguma publicação que “vem aí”? Fantasia urbana, trambiqueiros, Jogo do Bicho…
Lis: De fato, é pesquisa para um “vem aí”. Você me pegou no pulo do gato. Estou trabalhando na minha própria versão de um Jogo do Bicho fantástico.
Ana: Já posso começar a minha carreira de repórter investigativa.
Lis: Pode. Você foi certeira.
Ana: Muito legal isso!
Agora, vem o momento em que eu preciso admitir a minha ignorância. Você é “oceanógrafa e pesquisadora”. Mas o que um oceanógrafo faz?
Lis: É… essa é uma pergunta que eu respondi muitas vezes nos últimos dez anos.
Bom, a oceanografia em si é o estudo dos oceanos sob todas as disciplinas possíveis. A gente estuda os oceanos pelos aspectos físicos, que englobam as correntes marinhas, as marés, a interação do oceano com a atmosfera. Então, por exemplo, muitos dos modelos de mudanças climáticas usam o conhecimento oceanográfico para isso. A gente também estuda os oceanos sob os aspectos químicos e geológicos. Por exemplo, a busca por petróleo passa por um bocado de conhecimento oceanográfico também.
E, no meu caso, a gente também estuda os oceanos sob o ponto de vista biológico. A minha especialização é com oceanografia biológica, especificamente baleias e golfinhos. Mais especificamente ainda, porque a ciência é feita de especializações, eu trabalho com a comunicação de baleias e golfinhos e os efeitos da poluição sonora dos oceanos sobre eles.
Ana: Agora que eu perguntei o que um oceanógrafo faz, a gente volta para a literatura. A gente sabe que “Marea Infinitus” com certeza bebeu da inspiração da oceanografia, mas onde mais você diria que a oceanografia apareceu na sua obra? Em que outros lugares ela apareceu e você bebeu a inspiração da sua persona cientista?
Lis: Bom, “Marea Infinitus” é o mais óbvio. Eu já falei isso algumas vezes em outras mídias e até na newsletter também. Para quem não conhece a minha newsletter ainda, está tudo lá.
Em “Marea Infinitus”, eu usei muito do meu conhecimento para criar o cenário do planeta, porque sempre foi uma vontade minha escrever sobre um planeta todo coberto por água. Então, invariavelmente, é o lugar em que eu mais usei.
Mas, de certa forma, “As sete mortes de uma sereia” pega um outro lado oceanógrafo meu, que não é tão científico e é mais apaixonado mesmo pelo mar e seus conceitos. Em “As sete mortes de uma sereia”, eu brinco com a ideia dos “sete mares”, que demandou um pouco de pesquisa também para eu escolher quais mares usar, já que não existe um consenso real sobre quais são os sete mares.
E em “Contenção”, um conto meu que pouca gente leu, porque saiu na revista Noturna. É um conto de horror, mas eu considero ele uma ficção científica, porque não está na Terra, se passa em outro planeta, mas é bem sutil essa ambientação, já que ele é muito focado nos acontecimentos entre os personagens. A inspiração toda dele foi a catástrofe de óleo que o Nordeste passou anos atrás. Então isso foi uma questão que eu acompanhei mais como oceanógrafa, que me marcou muito, e aí eu transformei nessa história de horror.
Ana: Isso é interessante, você falou uma questão que te marcou da sua vida profissional e você trouxe da escrita. Esse é um tópico onde eu admito uma invejinha básica: você inclui a oceanografia na escrita, mas eu acho muito difícil incluir a física. Você diria que é fácil para você incluir a oceanografia na escrita?
Lis: É engraçado isso. Não era fácil, há anos atrás, quando eu levava muito a sério isso de incluir a oceanografia na escrita. Eu queria fazer tudo muito exato, muito detalhado.
Se tornou fácil quando eu desapeguei do rigor científico, quando eu entendi que misturar oceanografia e escrita não significava necessariamente misturar conhecimento e imaginação. Óbvio que o conhecimento está ali, mesmo que implícito, mas, quando eu desapeguei um pouco dessas questões mais… leis físicas e reações químicas e tudo mais, foi quando se tornou mais fácil. Então, por exemplo, “Marea Infinitus”, eu tenho certeza que a física não está 100%, está só razoável, mas eu acho que a história mascara isso o bastante para não ser uma questão.
Ana: Na sua newsletter você fala bastante dessa separação da Lis escritora e da Lis cientista, como você cruzou algumas pontes de se apresentar como escritora para os seus colegas, etc. Você poderia falar um pouco do tópico?
Lis: É uma questão que eu acho que deve acontecer para mais pessoas que têm duas carreiras, e eu acho que mulheres e pessoas em outras partes do espectro do gênero que não sejam homens cis, devem sentir também. O meio científico, principalmente o meio oceanográfico, ele é bastante masculino. Você com certeza já vive isso.
Então, ao longo dos anos, eu construí uma imagem muito séria ao redor da Lis cientista, como um mecanismo de defesa, como uma forma de manter meu espaço, de não ser descartada por ser emotiva demais ou, enfim, não ter aquela aparência de fraca que o pensamento machista normalmente atribui a uma mulher muito feminina. Além dessa questão, tem também a questão do elitismo do pensamento científico, de ser uma forma superior de raciocínio.
E o que eu escrevo não é considerado a “literatura superior”.
A maioria das pessoas com quem eu convivo no trabalho não consome esse tipo de literatura, de fantasia, de ficção científica, e quem consome não fica falando sobre isso também. Não é um assunto considerado “adulto”, e eu tinha essa preocupação de que, quando meus escritos viessem a público, isso pudesse interferir na minha imagem. Tanto que eu escolhi dois sobrenomes diferentes, um para cada carreira, para ficar tudo bem separado. Mas foi muito legal que muita gente não demonstrou nenhum tipo de desdém, pelo menos não na minha frente.
Isso é uma questão que eu acho que ainda está sob uma fase de teste, porque tanto “Marea Infinitus” quanto “As sete mortes de uma sereia” são leituras mais sérias. Por mais que sejam ficção científica e fantasia, eles têm temas que são considerados mais sérios. Quando o romance sair, que aí é verdadeiramente uma coisa fora do que é considerado meu espectro, não só por ser um romance romântico, mas também por ser fantasia, não ter nada de mar nele (não abertamente, né?), eu acho que muita gente que convive comigo fora da escrita vai ter um pouco de susto, mas agora já é tarde demais para se preocupar com isso.
A gente vai ter que lidar com as coisas à medida que elas forem acontecendo. Então, é bem por aí. Eu fiz muita questão de manter esses dois lados separados, mas eu já estou num momento em que eu não consigo fazer isso. É uma vivência misturar duas carreiras tão diferentes.
Eu ainda estou passando por novas experiências nesse quesito.
Ana: Invertendo um pouco a pergunta, você diria que você sente uma influência da sua vida artística no seu trabalho da ciência?
Lis: Ninguém nunca me perguntou isso antes. Eu acho que eu sinto uma diferença de olhar sobre algumas coisas. Principalmente hoje, que eu acho que dá para dizer que eu vivo as duas carreiras com a mesma intensidade.
Uns anos atrás, eu ainda era muito mais oceanógrafa do que escritora. Não sei se no futuro eu vou ser mais escritora que oceanógrafa, mas hoje em dia eu acho que eu sou bem meio a meio. Então eu acho que hoje eu olho para a minha pesquisa muito com um olhar mais rejuvenescido, de não considerar as coisas tão friamente, não ficar tão chateada quando os experimentos dão errado, ou quando eu não consigo alguma coisa, como também com um novo maravilhamento, uma coisa que eu já tinha perdido.
Porque a carreira científica no Brasil é muito exaustiva. Não só no Brasil, mas a minha vivência é no Brasil. Os anos de formação, bolsa, edital e tudo mais… tudo isso endurece a gente para o fazer científico, porque tem sempre outras mil questões ali.
Muitas vezes você está trabalhando no experimento, mas está pensando na prestação de contas que você tem que entregar e no prazo do edital que vai fechar. Enfim, eu acho que, quando eu me afasto e fico um pouco mergulhada na escrita e eu volto para a ciência, eu consigo encontrar de novo a mesma curiosidade que eu tinha quando eu estava começando. É uma coisa de ficar mais empolgada com as coisas que eu estou fazendo.
É até uma nova disposição maior para fazer algumas coisas do zero, para recomeçar coisas que deram errado e tudo mais.
Ana: Isso é muito fofo e inspirador.
Lis: Mas eu não tinha reparado nisso até você me perguntar.
Ana: Estou muito feliz com isso.
Agora falando sobre outras áreas da sua vida, o que escrever significa para você?
Lis: Bom, escrever, o ato de escrever, criar histórias, enfim, inventar esses mundos à parte… sempre foi o meu refúgio da realidade. A realidade como ela é sempre me pareceu insuficiente, desde que eu era criança.
Isso é uma coisa que eu sempre fiz. Eu desenhava mapas, inventava as histórias na minha cabeça, mesmo que eu não soubesse escrever propriamente dito, não tivesse aquela coisa de escrever uma história do início ao fim. Isso se mantém hoje.
Apesar de hoje eu também ter colocado isso num espectro mais profissional, a escrita ainda é um refúgio, é um lugar onde eu me sinto segura para fazer o que eu quiser, para ser o que eu quiser, para processar algumas coisas que eu não falaria em voz alta. Eu não costumo descrever meus medos ou meus problemas tão literalmente no papel. Eu não costumo, vamos dizer assim, poxa, briguei com a minha mãe, dificilmente vai ter uma briga com a minha mãe no livro, mas, enfim, as sensações que essas coisas me geram acabam vazando para o papel de um jeito ou de outro, não tem como evitar, mesmo que não de uma forma muito “transcrição literal das coisas”.
Ana: Esse é um assunto interessante. Quais são alguns tópicos que você sente que são recorrentes na sua escrita?
Lis: Eu demorei um tempo para perceber quais eles eram, mas eu tenho alguns, sim. Um deles, que eu acho que é o que fica mais nítido, tanto pelo meu conto que já saiu quanto pelo livro que vai sair agora, é a questão da dualidade da vida da mulher.
Mais especificamente da mulher hétero, que é o que eu sou. Você leu “Areia e Pólvora”, então acho que você conhece a Anabela. A Anabela é muito eu.
Ela é uma cientista, mas navegando por águas não tão conhecidas por ela e descobrindo outros aspectos de si. Eu acho que isso é um tema muito meu, porque como eu sempre me senti inadequada e eu sempre lutei para ocupar os espaços que eu queria ocupar, da forma que eu queria ocupar, é como eu falei no início, eu busquei me enrijecer, me endurecer, de certa forma até me masculinizar ao longo do tempo, e hoje eu me encontro fazendo o caminho inverso para recuperar as coisas que eu abri mão em nome de algumas conquistas. Por exemplo, a própria leitura de romances românticos.
Antigamente, eu lia romance escondido. Ninguém sabia que eu lia romance, porque “nossa, você gosta de romance? Como assim? Você é tão, sei lá, insira aqui algum adjetivo sério”.
Então eu hoje tenho feito muito essas duas pontes em diferentes áreas da minha vida. A cientista e a escritora, a filha e a esposa, e mulher independente também, que não precisa de um casamento para se definir.
Todas essas multifacetas femininas dentro da sociedade que a gente vive hoje, nesse momento transitório em que a mulher pode tudo, mas também não pode nada. Então, isso é um tema que, de uma forma ou de outra, acaba passando para as minhas protagonistas. Outro tema que eu acho recorrente nas minhas histórias, na maioria delas, não todas, é uma questão de descobertas também, de alguma forma. Isso é uma coisa muito cientista de minha parte. É meio que os personagens têm sempre uma curiosidade sobre alguma coisa, seja isso o mundo, ou uma criatura, ou um sentimento também. Alguma coisa que eles acham que não é para eles, mas sobre a qual gostariam de saber mais.
Estou pensando aqui se tem mais algum fácil de descrever.
Ana: Às vezes tem, mas é material para terapia. Você não precisa desenterrar o material para terapia se não quiser.
Lis: Não, não, não. Isso é uma coisa interessante, sabe?
Eu acho que hoje em dia tem se tornado muito comum o escritor ser muito público quanto aos problemas pessoais que eles têm. Para explicar o que ele escreve. Mas eu acho que isso não é uma obrigatoriedade, sabe?
Não necessariamente as ideias precisam vir de algum trauma. Pode ser o oposto, né? Pode ser justamente uma vontade de viver alguma coisa que você nunca viveu.
Ou alguma coisa que é o contrário, né? Você não tem a menor vontade de experimentar na sua vida. Tem muitas emoções que eu acho que marcam a gente que não necessariamente são processadas a partir da vivência direta.
Ana: Você tem alguma dessas em você que você pensa “não, isso é algo que eu não vivi, mas que eu gosto de escrever sobre isso”? Como aquela situação do Octavia Butler: “Eu escrevo sobre poder porque eu tenho pouco”.
Lis: Está aí uma coisa interessante. Eu não tenho na minha vida nenhum trauma familiar pesado.
Minha relação com a minha família é ótima. Mas se você for olhar para as minhas personagens todas elas têm algum problema familiar. Talvez isso seja um medo meu que eu esteja colocando no papel.
Mas, assim, não é uma coisa que eu vivi. Então, no romance mesmo, o que vai sair, a minha personagem principal está totalmente atrás de vingança contra a família dela.
Mas, mãe, pai, não quero me vingar de vocês. Eu prometo. Não se preocupem. Se vocês estiverem lendo isso…
Ana: Terminar a entrevista e escrever um e-mail… “Querida mãe da Lis…”
Risos
Ana: Agora falando de outro aspecto da sua carreira… Lis, você é uma escritora multiformatos, multi-idiomas, multigêneros. Você tem fantasia, ficção científica, você tem horror, você tem conto e romance. Você tem escritos em português e em inglês.
Lis: Eu acho que eu sou inquieta. Acho que é por isso que as coisas vêm em vários formatos e gêneros.
Ana: Você tem um favorito? Começando do começo, entre os gêneros, você diria que você tem um favorito para escrever?
Lis: Hum… Difícil essa. Uma coisa que eu percebo, que eu não sei dizer se é um favoritismo ou não, mas é uma tendência que eu observo: as coisas mais curtas, eu tendo a puxar para a ficção científica. “Marea Infinitus”, “Contenção”, o conto que saiu na Eita, também. “O Artesão de Duramere” é uma ficção científica. Tem algumas coisas curtas minhas que não saíram também, mas tem uma noveleta minha também de ficção científica. Estou doida para ela sair, não sei se vai. Mas é ficção científica bem space opera. Eu acho que a ficção científica atrai o meu lado mais prático. Fala bem com a oceanógrafa, então eu tendo a ser mais ágil nas descrições, nos acontecimentos. Eu acho que acontece.
E as coisas mais longas tendem mais para a fantasia ou aquele espaço meio estranho, que seria o weird, o gênero weird. Não é nem realismo mágico nem fantasia nem horror, fica naquele lugar meio esquisito. Então, os romances puxam mais para esse caminho fantástico. Eu acho que a magia, o sobrenatural, demanda mais palavras de mim.
Ana: Curiosa essa relação entre gênero e formato. Então já que falamos sobre esses dois tópicos, vamos falar um pouquinho sobre seu lado multi-idiomas! Como você se sente sobre essa coisa de escrever em inglês? Pra você, é mais fácil ou mais difícil?
Lis: Eu não sei dizer se é mais difícil ou mais fácil.
O inglês faz parte da minha rotina por causa da ciência, não tem como fugir disso, né? É um idioma que sempre vai estar presente. Mas, além disso, eu também sou daquela geração de pessoas que quando ia procurar fanfics… tinha fanfics em português? Tinha.
Mas, se você estivesse disposto a se sacrificar pra ler as fanfics em inglês, mesmo não tendo inglês muito bom, um mundo enorme se descortinava pra você. Então o inglês também sempre esteve presente pra mim na ficção, nas fanfics, e aí depois, quando eu já tinha tanto o meu dinheiro, pra comprar o que eu quisesse, quanto a segurança no idioma, eu também passei a poder comprar livros em inglês. Eu tenho, desde a adolescência, esse vocabulário fictício aí pra gastar.
Ana: Falando sobre os seus textos em inglês, as versões em português do “Cephalopod Heart” e “A Wish Upon a Fish” foram traduzidas pelo Ariel, né? Como que é esse processo de ver o seu texto, de certa forma, escrito por outra pessoa? Você ainda consegue olhar e sentir que é o seu texto?
Lis: Cara, é uma experiência que eu acho que eu recomendo pra todo mundo.
Eu poderia ter eu mesma traduzido? Poderia. Eu tenho saco pra isso? Não.
Eu tentei, mas eu larguei nos primeiros parágrafos, porque eu já estava tão confortável com as histórias como elas eram em inglês que eu não via motivo pra escrever elas de novo. Se eu fosse traduzir, eu ia mudar muito o que estava ali.
Então a figura de um tradutor ia trazer uma imparcialidade de simplesmente transformar o texto de forma de idioma, sem mexer em histórias, sem mexer em nada. E aí o Ariel, que é um grande amigo meu, uma pessoa em quem eu confio, é uma pessoa que volta e meia beta meus textos, então ele conhece a minha escrita, tá acostumado tanto com os meus vícios de linguagem quanto com as coisas que eu gosto de fazer. Foi uma escolha muito natural.
E é muito legal porque ele traduziu o “Marea Infinitus” e “As sete mortes de uma sereia”, que são duas histórias completamente diferentes, e ele conseguiu pegar o tom das duas muito bem. Até ele falou que traduzir as duas foi diferente, porque são histórias diferentes.
Mas, assim, essa magia eu não sei explicar. Eu não sei se é porque a gente é amigo ou se é a pura habilidade do tradutor, mas eu consigo ler os textos em português e reconhecer uma coisa que eu escrevi, mesmo tendo passado pelo filtro dele. E tem um pouco dele, sim.
Principalmente em “As sete mortes de uma sereia”, que tem menos cientifiquês e mais descrição poética, tem ali palavras que são muito dele, mas que eu sei porque, como amiga dele, também conhecendo os textos dele, eu reconheço a voz dele no texto. Mas eu acho que talvez uma pessoa que não estivesse acostumada nem comigo nem com ele não percebesse essa contribuição. Ela tá ali, com certeza, mas eu acho que ficou bom.
Eu acho que foi uma tradução muito bem feita.
Ana: Chegou a hora de perguntar o que você pode nos contar sobre o seu “vem aí”. Porque, afinal, você já publicou por conta própria, você já publicou com a ajuda da sua agência, você já publicou em revistas, e agora você vai publicar com uma editora!
Lis: Pois é, esse aí é o plot twist que nem eu esperava há um ano atrás. O romance, que vai sair pela Rocco, está previsto pra sair em outubro. O título é “Garras”.
Na história, a personagem principal é a Diana. Ela é uma bruxa que quer se vingar da própria família, e, pra conseguir essa vingança, ela precisa fazer um acordo com um lobisomem. E é aí que ela chega no Edgar, que é um lobisomem de uma matilha da periferia da cidade. Ele é parte de uma gangue.
A história gira em torno desse acordo entre os dois, pra ela conseguir a vingança, e também ele vai ter os benefícios dele de… principalmente centrados em riqueza e em poder, tirar a família dele da periferia da cidade. É um mundo secundário, então não se passa no nosso mundo, apesar do cenário todo ser bem inspirado no Rio de Janeiro dos anos 20. Então, a gente tem essa estética dos anos 20 ao longo de toda a história.
É uma atmosfera bem mais sombria, tem um bocado de conteúdo explícito, tanto na parte do romance quanto na parte das lutas.
A história toda tem esse plot de vingança, mas há muito também sobre duas pessoas que nunca acharam que iam encontrar o amor e acabam encontrando o amor num acordo de benefício mútuo. O romance deles se desenvolve muito nesse jogo de estamos aqui só por negócios, e os negócios vão, aos poucos, se transformando em algo muito mais significativo. E aí a cidade toda é baseada no Rio de Janeiro, mas ela tem, no meu universo, humanos e criaturas sobrenaturais convivendo todos abertamente, só que os lobisomens, os vampiros e todo o resto são considerados cidadãos inferiores.
Tem algumas famílias de seres mágicos que são ricas, mas muitas das criaturas vivem na periferia. Então, isso é bem uma coisa sobre o Rio de Janeiro também, na verdade, que não só tem uma grande quantidade de cidadãos periféricos, como também tem na figura da polícia um Estado opressor. E a família da Diana é uma família de caçadores.
A caça às criaturas sobrenaturais foi proibida há muito tempo, mas os caçadores ainda detêm um certo poder nessa sociedade. A família dela é de caçadores, então ela se associar com os lobisomens é um grande escândalo.
Tem um pouco dessas questões aí também.
Ana: Eu estou gostando do que estou ouvindo. Era para eu estar aqui sendo uma pessoa imparcial, fazendo uma entrevista, e eu estou, tipo, olhinhos brilhando. Deixa eu encaminhar a gente para as perguntas finais. O que mais você tem engavetado assim que você gostaria de trazer ao mundo?
Lis: Eu tenho uma noveleta, que é uma space opera, que se passa numa nave, uma nave de transporte de pessoas, mas que é ilegal.
Então, todo mundo que estava sem dinheiro para comprar a passagem legalizada vai nessa nave. Só que aí o piloto morre, e eles precisam resolver essa situação de que estão sem piloto, e que a nave está dando problema numa região de um berçário estelar. É uma noveleta bem curtinha, tem umas quinze mil palavras, mas eu gosto muito dela. Eu quero muito que ela saia de alguma forma. A gente está tentando uma publicação aí, mas, se não rolar, a gente vai ver se ela fica independente mesmo, pela Magh.
Além dela, eu tenho um romance, que eu gosto muito, que eu escrevia, na verdade, até antes desse que vai sair, mas ele ainda não encontrou um lar. Esse se passa numa ilha. Se passaria nos tempos atuais. Apesar da ilha ser inventada, é o nosso mundo contemporâneo. E eu gosto muito dele, porque tem várias figuras marítimas que eu adoro, como o farol e baleias. Então eu queria muito que esse saísse um dia.
Ana: Eu lembro de você mencionar que existia uma outra história no universo de “Areia e Pólvora”, talvez sobre os irmãos da Anabela?
Lis: Essa história existe, e ela mora no meu coração, mas é uma história que precisa de muita revisão. É uma maçaroca que, pra desfazer, eu precisava de meses de férias com uma dedicação exclusiva pra isso. Então esse é um que deve demorar muito pra ver a luz do dia.
Ana: Tudo bem, eu espero, eu espero. Igual… vamos lá, metáfora náutica: igual àquelas esposas dos marinheiros esperando no porto.
Lis: Dessa você ia gostar. A personagem principal é astrônoma.
Ana: Que adorável. Muito obrigada, Lis. Foi um prazer estar com você.
Lis: Eu que amei, foi muito boa essa conversa.
Edição: Ana Carolina Dantas, Mile Cantuária e Roger Portela
Revisão: Mile Cantuária
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