Da biologia à literatura: entrevista com Arthur Malvavisco

Antes de ler, verifique se as criaturas são cientificamente plausíveis.

Banner composto pela foto do Arthur malvavisco dentro de uma moldura branca em formato de pinceladas. Arthur é um homem branco de cabelo castanho até o ombro, usando uma camisa bufante branca e colete vermelho, enquanto faz carinho num gato de pelagem amarelada. Ao lado da foto dele estão as capas de seus livros, Discórdia de Diamante, mostrando dois homens e dois dragões, um deles bebê; e Lebre da Madrugada, mostrando uma lebre e várias plantas e implemento cirurgicos medievais. Todas as imagens estão sobre a fotografia escurecida de uma moita de samambaias, e o título diz "M P Neves entrevista Arthur Malvavisco"

Arthur Malvavisco é natural de Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Filho de mãe escritora, sua fascinação pela literatura começou ainda na infância. Na juventude selou sua relação íntima com o gênero da fantasia, que por muito tempo foi seu principal escapismo como adolescente trans em uma época e local em que questões de gênero não eram muito debatidas. Embora escreva desde os dez anos, só publicaria seu primeiro livro em 2020. Biólogo, tendo estagiado com répteis e educação ambiental, carrega um pouco dessa bagagem para suas obras, ao explorar a relação de medo e fascinação do mundo humano pelo selvagem.

M. P. Neves: A primeira pergunta é meio existencial: quem é Arthur Malvavisco? O que faz, como vive, qual Pokémon escolheria como inicial?

Arthur Malvavisco: O Arthur é um bicho do mato, biólogo de Mato Grosso do Sul, e o “Malvavisco” é um nome inventado para ficar mais bonito nas capas dos livros e diferenciar um pouco as duas profissões. Não que eu ache elas antagônicas, mas é bom ter um perfil para cada uma. Como Malvavisco, tenho três livros de fantasia publicados, mais uns três contos, e como Arthur já trabalhei com répteis, pequenos mamíferos, grandes mamíferos e coexistência humano-fauna. O coração, porém, permanece na herpeto, por isso eu escolho o Charmander. 

Nota: Herpetologia é o ramo da zoologia que estuda os répteis e anfíbios.

M. P.: Agora, vamos falar sobre leitura, o pessoal da VAL adora indicações qualificadas, a newsletter meio que existe pra isso! Por esse motivo, eu queria saber algumas coisas: primeiro, o que você está lendo no momento, segundo, uma leitura que te influenciou profundamente como escritor e, terceiro, qual foi o primeiro livro que você leu e pensou "caramba, esse negócio de leitura é bom mesmo"? Pode jogar mais uma recomendação de leitura no pacote, tema livre!

Arthur: No momento, eu estou lendo dois livros: “Desgraçado”, do Ayrton Silva, e “How to Blow Up a Pipeline”, de Andreas Malm. Estou gostando bastante dos dois.

Acho que eu não tenho uma única leitura que me influenciou. Vejo minha vida muito separada em fases distintas, e acho que meus livros do coração me acompanham através delas: quando eu era muito novo, eu amava “O Silmarillion”, então eu descobri “O nome do vento”, e depois disso passei um bom tempo apaixonado por tudo da Robin Hobb. Hoje acho que estou numa fase mais “The Devourers”, do Indra Das. Mas acho que foi a Robin Hobb que de fato me fez ver a literatura como uma arte na qual eu gostaria de me aventurar. Acho que isso já foram muitas recomendações, mas eu ainda gostaria de jogar, pelo menos, uma nacional: “Mariposa vermelha”, de Fernanda Castro.

M. P.: Muitas vezes iniciamos nossa jornada literária por influência de algum parente ou amigo com livros para indicar. Teve alguém assim na sua vida? E hoje em dia, já um leitor maduro, como você faz para selecionar a próxima leitura?

Arthur: Com certeza foi a minha mãe. Ela é professora de história e escritora de literatura infantil e poesia, e, quando eu era criança, tudo o que fazia era me dar livros. Ela me iniciou na mitologia, o que eu acho que nutriu o meu gosto pelo fantástico. 

Hoje em dia, é mais raro eu procurar recomendações, especificamente, mas sempre acompanho canais de resenha e páginas literárias, então vou montando uma lista de coisas que eu gostaria de ler. E nem sempre são coisas que eu vou gostar  de ler, porque muitas vezes eu quero só ver o que o mercado achou em tal livro. Gosto sempre de intercalar um livro que espero que seja bom com um livro que eu não vou gostar muito. Às vezes passo raiva, às vezes me surpreendo e frequentemente me divirto muitíssimo lendo coisa pra lá de ruim.

M. P.: Quando alguém me pede indicação de fantasia, os seus livros sempre entram no assunto, e vão ser a pauta principal aqui, também. Tanto a duologia “Senhores de sombra e prata” quanto seu novo lançamento, “Discórdia de diamante”, trazem um dos meus tipos favoritos de história: personagens muito diferentes forjando uma aliança (e um romance) improvável. Você consegue identificar quando esse tema se tornou prevalente na sua escrita? (Eu brinco que sou fã do tropo por causa de Máquina mortífera, mas honestamente não sei, só adoro essas histórias!)

Arthur: Acho que isso acontece porque eu sempre vejo romance em dois níveis: a história em si, com os personagens como eles se apresentam, mas também num subtexto em que o romance existe pra representar uma espécie de síntese entre as partes fraturadas de um todo. Existe uma análise de que muitas vezes o romance literário não é sempre sobre se relacionar com os outros, mas sobre se relacionar com partes diferentes de si mesmo (falando de autoaceitação, por exemplo), e eu gosto muito dessa perspectiva. Então acho que pela própria natureza dessa visão, acabam gerando personagens contrastantes, porque nascem dessa cisão. 

M. P.: Além disso, quais temas recorrentes você gosta de abordar nas suas histórias? E como você faz para que cada uma seja diferenciada da outra mesmo trabalhando esses pontos em comum?

Arthur: Acho que a relação com a natureza é um ponto bem recorrente. Assim como reflexões a respeito de masculinidade e sexualidade. Acho que diferenciar os projetos é uma grande luta minha: vez ou outra me pego pensando “um romance entre dois caras lutando juntos contra o mundo de novo? É sério isso?” então eu tento variar bastante as propostas e cenários. “Lebre” e “Príncipe” são fantasia mais medievalesca/renascentista com elfos meio feéricos, já “Discórdia” é mais moderno. Um vem aí é bastante Brasil República com vampiros e outro tem inspirações sul-asiáticas e envolve tigres e unicórnios. Eu tenho um checklist de temas e cenários que eu quero trabalhar, e só vou me permitir ceder à paranoia de estar sendo monotemático quando todos eles acabarem.

M. P.: Outra coisa bastante perceptível na sua escrita é a influência da sua formação como biólogo. Toda a ecologia dos seus mundos de fantasia (e sci-fantasy) é muito bem estruturada, os seres fantásticos, tornados bem realistas por esse esmero em construir uma biologia verossímil, seja para os ilurianos, seja para os dragões. Minha pergunta é: onde o Arthur biólogo entra no processo de escrita do Arthur escritor? Você já visualiza esse nível de detalhamento nas sementes de suas histórias, ou desenvolve primeiro enredo, personagens e outras facetas, e só depois vai buscar a verossimilhança a partir dos seus conhecimentos? Ou é um processo diferentão, mais difícil de explicar? (Cuidado, estou tentando aprender os seus segredos). 

Arthur: Depende! <risos> O Arthur biólogo está sempre presente, desde o começo, mas o nível de detalhamento muda dependendo de cada projeto. “Discórdia de diamante”, por exemplo, foi um livro pensado desde o início para depender da biologia dos dragões, por isso a maior parte já estava definida desde o início. Os ilurianos, por outro lado, foram construídos mais devagar. Uma coisa que sempre me incomodou na fantasia com elfos foi: por que uma raça (ou espécie) que supostamente é mais próxima da natureza precisa se portar de forma tão civilizada e de acordo com nossos padrões antropocêntricos? Então me dediquei à tarefa de escrever “elfos, só que diferentes”, mais próximos da natureza em todos os aspectos positivos, mas também naqueles que a nossa sociedade consideraria desagradáveis. Mas a natureza é muito diversa, o próprio conceito do que é “natural” e o que não é foi muito construído por nós. Então eu meio que fui descobrindo conforme escrevia. 

M. P.: Agora, invertendo essa lógica, vou roubar descaradamente uma pergunta da Ana.txt (AKA Chefe Suprema e Soberana da VAL): o seu lado escritor tem alguma influência no seu trabalho como biólogo?

Arthur: Com certeza! Quando a gente escreve, aprende a ver as coisas de forma mais analítica, mas também mais empática. Hoje em dia eu trabalho com coexistência humano-fauna e lido com realidades muito diferentes da minha. Lido com pessoas que fazem coisas com as quais eu absolutamente não concordo. E essa habilidade de entender, de olhar para uma pessoa e saber que a trajetória foi importante para chegarmos nessa situação me deu um tato indispensável pra lidar com certas situações. 

M. P.: Seu livro mais novo, “Discórdia de diamante”, na verdade, é bem diferente da maioria das fantasias nacionais por abraçar a fantasia científica, ou sci-fantasy. Como você decidiu isso, foi natural para um cientista ou houve alguma estratégia específica? Fez alguma leitura que queira comentar como pesquisa ou para se inspirar? 

Arthur: Eu queria algo bem diferente da minha outra duologia publicada e passei um tempo lendo vários clássicos de fantasia, sci-fi e sci-fantasy. A principal inspiração foi “Dragonriders of Pern”, uma série bem antiga que nunca foi publicada no Brasil, mas que também apresenta dragões num cenário sci-fantasy, embora seja um cenário bem mais cavalheiresco, pendendo pro medieval com toda aquela coisa de tecnologia perdida. E também tem viagem no tempo, o que é uma loucura. Foi esse livro que me fez ganhar interesse pela sci-fantasy, e me deu a ideia de criar o meu próprio sistema de “dragões biologicamente plausíveis, porém depende”.

M. P.: Eu ainda não terminei de extrair todo o seu conhecimento... Digo... Mergulhar no seu processo de escrita para os leitores poderem te conhecer melhor! O gênero fantástico tem todo tipo de obra à disposição dos leitores, é um nicho pequeno, mas muito denso e, de certo modo, competitivo. Como você busca se diferenciar na escrita? Em que ponto você diria que suas obras se destacam, dentre as muitas outras da fantasia nacional?

Arthur: Eu acho que uma coisa que eu faço muito é me focar nessa parte de explorar masculinidades alternativas. A fantasia foi, por muito tempo, um clubinho masculino, mas que não estava aberto para todos os homens igualmente. Agora, ela está (graças a qualquer entidade, e até tardiamente) sendo mais ocupada por vozes femininas que estão contribuindo muito para a evolução e a diversificação do gênero. E eu acho isso ótimo! Mas também sinto que há uma necessidade de explorar mais a diversidade de protagonistas masculinos, que antes também era muito limitada às identidades dominantes. Então acho que talvez minhas obras sejam um pouco diferentes por que eu quero ir por esse caminho, de explorar a diversidade por uma ótica mais masculina e, ao mesmo tempo, queer. 

M. P.: E quais os próximos passos na sua carreira de escritor? Já tem planos para um novo lançamento, participações em antologias ou eventos? (Esse é um blog para leitores e, como você sabe, queremos sempre mais e mais, mesmo que você tenha acabado de lançar um livro incrível!)

Arthur: Por hora, não tenho nada programado. Mas estou muito animado para o meu livro de gaveta, que é um romance gótico com vampiros num cenário de história alternativa, e que se passa no Pantanal Sul. Tem um vampiro albino bonitão que se transforma em onça, antagonistas latifundiários incestuosos e horrores cósmicos no porão. Editoras interessadas, estou piscando de forma muito descarada para vocês!

M. P.: Para finalizar, muitíssimo obrigado pelo seu tempo! Pode se despedir dos leitores da VAL como quiser e deixar suas redes e outros jabás, pedidos e recadinhos!

Arthur: Meu Instagram está meio às moscas, mas é @arthurwaxmellow, e no Bluesky estou como @amalvavisco.bsky.social, onde sou mais ativo, mas também falo muita besteira. A única coisa que peço é, se gostam de dragões e tiroteio, deem uma chance para “Discórdia de diamante”. 

Se gostam de elfos, morenos sarcásticos e batalhas de fantasia, considerem “Lebre da madrugada” e “Príncipe partido”. 

E desde já muito obrigado a todo mundo que leu essa entrevista, e aos organizadores da VAL que me convidaram. Um beijo pra todo mundo e não votem no agronegócio.

Revisão: Luiz Felipe Sá

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