Como conciliar leitura e escrita com a vida adulta pós-pandemia?

Antes de ler, verifique se você tem tempo pra isso.

Ilustração de um homem de terno e cartola sentado numa cadeira. Ele segura talheres e usa um babador como se estivesse sentado à mesa, mas o babador dele se estende até o fim da imagem, e sobre ele há vários camponeses plantando e trabalhando.

Fiquei alguns dias pensando em como era minha vida na pandemia. Embora algumas coisas permaneçam as mesmas, outras são completamente alienígenas se vistas pelo meu eu do passado. E não digo isso em relação ao uso de máscara ou do gosmento álcool em gel que lambreca minhas mãos diariamente. Falo de hábitos diferentes, que mantiveram minha sanidade durante o período de reclusão e que batalham pra perdurar até hoje.

Ficar recluso em casa fez com que eu fosse atrás de meios para ocupar minha mente. Não lembro agora se foi em junho ou julho de 2021, mas me peguei vendo uma live do Nando Reis falando sobre o All Star azul da Cássia Eller. Nessa mesma época, passava horas vendo o Lucas da Fresno fazendo seu streaming sobre música, mas não somente. E veja, o mundo lá fora estava um caos, mas saber a cor do famoso tênis ou descobrir as inspirações e nuances das músicas melancólicas que rechearam minha adolescência me mantinha são. Foi inclusive nesse ano que consegui (finalmente) idealizar, escrever, revisar e publicar meu primeiro livro. Não antes de ler mais livros, contos e novelas do que li a vida inteira.

A minha sensação era de que a pandemia havia dado um pause no capitalismo tardio, talvez por ser um homem, branco, de classe média, com família apoiando, sentado em cima de uma pilha de privilégios, já que as mazelas do sistema fizeram com que gente literalmente disputasse osso pra matar a fome. Essa pausa foi sentida por conta do meu consumo de arte. E, já em 2022, isso estava completamente incorporado ao meu dia a dia. A rotina de acordar, fazer a cama, comer e escovar os dentes ganhou dois novos itens: ler e escrever. 

Aproveitando essa rotina, estabeleci uma meta: escrever uma cena todos os dias. Não importava a quantidade de palavras, nem a cronologia ou o propósito da cena (parte de um livro, conto, crônica, etc.). E foi seguindo esse cronograma, durante o ano de 2022, que escrevi meu segundo livro, publicado apenas no ano seguinte, foi também nesse ano que o mundo começou a voltar para o lugar com a chegada das vacinas.

E então “saímos” da pandemia. A OMS emitiu comunicados, a vacina foi incluída no programa de vacinação, e a COVID-19 foi pouco a pouco sendo controlada (mas ainda mata! Lavem as mãos, usem máscara e bebam água!), fazendo com que 2023 fosse o primeiro ano “quase normal”, botando em cheque meu consumo e produção de literatura. Agora, a rotina de acordar, fazer a cama, comer, escovar os dentes, ler e escrever ganhou um novo item: correr atrás do prejuízo. 

A minha meta de escrita foi sendo ceifada pela correria do dia a dia. De uma cena, fui para uma página, depois três parágrafos, um, e agora tento anotar uma ideia todos os dias (inclusive, este texto surgiu de uma dessas anotações). Logo percebi que não havia pause no capitalismo, e consumir e produzir arte se tornou um recurso como qualquer outro nesse sistema vil. Como dinheiro, saúde, lazer, estudo, a arte voltou a ser mercadoria, disputando espaço na vida, que agora, no pós-pandemia, está mais corrida ainda.

O ano virou e chegamos em 2024 (você que está lendo do futuro, comenta aí “vim do futuro para” e deixa o teclado completar), o primeiro ano pós-pandemia, o primeiro ano de volta ao normal (se é que dá pra chamar isso de normal). Os primeiros meses já deixaram bem claro que o ritmo de consumo e produção de literatura durante a reclusão foi algo extraordinário e, portanto, inalcançável na situação atual. As ideias ainda vêm, mas tem sido muito difícil conseguir parar para escrever. Sigo com a meta de (tentar) anotar todas. 

É curioso que, mesmo com o mundo acabando, nós nos permitimos parar, respirar e fazer o que fomos feitos pra fazer: criar. Quase como um niilismo positivo, “já que o mundo vai acabar, vou aproveitar o quanto puder!”, e agora que não há mais a urgência do fim, retornamos ao moedor de carne, pois temos bilionários para sustentar, e não há tempo para arte no capitalismo tardio.

Mas a arte se tornou essencial na minha vida. Foi ela que me manteve são e salvo durante a pandemia, principalmente são. Antes, a arte era uma atividade como qualquer outra, agora é uma necessidade imperativa. Hoje é a arte que me guia, escrever e ler é parte de mim, sou dependente dela, seja consumindo ou criando, preciso da arte para continuar vivo. 

E se você, assim como eu, também adquiriu o vício em arte e veio ler este texto achando que iria ter uma resposta para a pergunta do título, não tem (se tiver, por favor, me conta!). É isso. Acabou. Boa sorte!

Foto de Luiz Felipe Sá um homem branco de cavanhaque curto e bigode olhando direto apra a câmera com a testa franzida

Escritor desde os 16, revisor desde 2018, editor desde 2022, sócio na agência Polarys , esposo e pai dedicado, colecionador de burnouts e inimigo do capitalismo. Pode ser encontrado no Twitter e Instagram.

Revisão: Mile Cantuária

Lembre que a seção de comentários fica aberta, e adoraríamos ouvir suas opiniões sobre o artigo! Como sua relação com a leitura e a arte mudou na pandemia? Como as coisas estão agora?

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