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Como um livro se torna um jogo?
Antes de ler, verifique se o cartão de memória está plugado.
Recentemente uma pessoa me perguntou como um livro se torna um jogo, e eu achei essa uma pergunta fantástica. Infelizmente a pessoa formulou a pergunta usando a palavra "RPG", e eu, nerd incorrigível que sou, comecei a responder pensando em RPGs de mesa, o que não tinha nada a ver com o que a pessoa tinha em mente e gerou uma grande conversa confusa até eu perceber o meu erro.
Assim sendo, eu venho aqui responder à pergunta do jeito certo e de uma forma coerente, e a resposta certa é (vocês nunca vão adivinhar essa): depende. Mas calma, que eu vou explicar do que depende, e daí com sorte no fim deste texto vocês vão sentir que minha resposta não foi tão inútil assim.
Nossa primeira pergunta é: para quem é o jogo?
O jogo é para pessoas que já amam o livro e você quer se aproveitar do amor delas para vender o seu jogo? (Acontece, uma produtora de jogos não é uma ONG, eles querem vender) É para pessoas que manifestam um vago interesse pelo livro, mas não gostam de ler? É para gamers que não necessariamente conhecem o livro?
Sabendo disso, o segundo "depende" é: qual "gênero" de jogo você quer fazer?
Porque, sim, jogos têm gênero. Talvez não seja essa a palavra mais adequada, já que gênero nos passa ideias como "terror, aventura, romance", e o que eu estou falando é mais uma questão de formato: MMORPG, plataformer, point and click, hack and slash, mundo aberto, de luta, de tiro, puzzle, dating sim, etc. (Se você não conhece esses nomes, calma: quando eu for usar algum deles eu explico o que é.)
Se você escolher fazer um jogo para "gamers em geral" que não conhecem o livro, você pode fazer uma adaptação muito mais solta, e francamente isso não é uma coisa ruim. O filme "Como treinar seu dragão" é apenas muito levemente baseado no livro, e ainda é um ótimo filme. (Eu falo das diferenças entre os dois no meu blog pessoal e o meu sonho de consumo era a famigerada adaptação em live-action ser uma adaptação direta e um pouco mais fiel do livro, e não um remake do filme. É uma esperança vã, mas enfim. Desculpem a saída pela tangente.)
Mas digamos que você queira fazer uma adaptação em videogame que vá agradar os fãs do livro. Nesse caso, o último “depende“ é: qual a experiência central que o livro transmite?
Num livro de romance, provavelmente é a experiência dos protagonistas se aproximando. Essa experiência combina melhor com um estilo de jogo onde você tem mais conversas entre personagens, e é por isso que geralmente quando se fala em romance se pensa em visual novels e dating sims. Num livro de mistério você quer, bom, resolver o mistério. Além das conversas com testemunhas e suspeitos, talvez você queira uma mecânica de jogo que te permita ir em lugares procurar pistas. Isso poderia ser feito num jogo point and click, mas se você achar que "perseguir o suspeito e talvez trocar uns tiros" é uma parte importante da experiência, você vai precisar de um jogo com elementos mais móveis, como um plataformer ou Action RPG.
Super Mario World | Mario Tennis |
Super Mario World é um jogo plataformer: você move o Mário pulando e andando em 2D. A maioria dos desafios é resolvida pulando no lugar e na hora certa. Esse jogo também segue uma historinha sobre resgatar uma princesa (Talvez você tenha ouvido o meme “a princesa está em outro castelo”). Em compensação, Mario Tennis é um simulador de esporte. A movimentação é mais tridimensional, e o jogo não tem um grande propósito, só jogar tênis usando personagens conhecidos.
Para jogos que seguem uma história, é muito comum alternar entre partes jogáveis onde o jogador recebe algumas tarefas, e partes onde um pedaço da história é colocado na tela como uma página de um livro ou um filminho — as famosas cutscenes. Ou seja: partes ativas, onde você faz coisas, e partes passivas, onde você recebe o conteúdo de bandeja. Nos jogos as pessoas tendem a querer participar do processo, então as partes que são "entregues" tem que ser entregues de um jeito que o jogador ainda se sinta no controle. Isso pode ser feito usando a cutscene como forma de estabelecer o próximo estágio da história, ou como recompensa por executar corretamente o estágio anterior. (Na minha opinião, as melhores são um pouco dos dois)
Por exemplo: num romance, as partes jogáveis poderiam ser diálogos onde você tem que escolher as opções certas para impressionar o crush, e se você consegue, no fim da fase é recompensado com uma ilustração ou animação representando os personagens em um encontro romântico (ou cenas de pegação). Num jogo de mistério, encontrar a arma do crime poderia desencadear uma cutscene com a reconstituição do crime, o que seria uma espécie de recompensa (um pouco mórbida pro meu gosto), mas em algum ponto da história você poderia ter outra que é uma complicação do caso: uma ligação do chefe da polícia falando que houve uma nova vítima.
E agora como a gente relaciona isso com a história do livro?
Começamos com o caso mais básico, onde o jogo segue bonitinho a história do livro.
Nesse caso a personagem jogável costuma ser a protagonista, ou cada fase pode ser jogada controlando um dos personagens, se o livro tiver múltiplos personagens relevantes.
Num jogo assim, quando você erra uma missão ou perde uma luta, você provavelmente volta um pouco na história, perde alguns pontos em dinheiro ou habilidades, mas de forma geral só repete até conseguir fazer. (Ou chama seu irmão gamer pra passar a fase pra você, quem nunca?) Mesmo seguindo a história, talvez seja preciso fazer alguns cortes e mudanças para garantir que o ritmo está adequado para um jogo, e as cutscenes podem usar todos aqueles recursos de trilha sonora, close na expressão do personagem, ângulos de câmera, etc. para passar uma visão que pode ou não bater com o que estava na sua cabeça quando você leu o livro.
Mas pra algumas pessoas um jogo seguindo uma história predefinida (pior ainda: uma história predefinida que elas já conhecem, já que leram o livro) não é muito interessante. Nesse caso existe uma manobra mais arriscada: o jogo onde você pode mudar a história do livro.
Geralmente esses jogos também seguem o padrão "parte jogável seguida de filminho", só que dessa vez as cutscenes mudam dependendo do que você faz na parte jogável. Você pode ter penalidades maiores por falhar em alguma tarefa do jogo, ou ter escolhas e tomar um caminho diferente do livro. Por essa razão é menos comum essa categoria ter múltiplos personagens jogáveis, já que você quer ver como as escolhas afetam um personagem só.
O andamento de um jogo desses depende de quantos finais alternativos os roteiristas quiseram criar, e quais escolhas/consequências eles fizeram relevantes no meio do caminho, e parte da graça jogar várias vezes e tentar descobrir todos os caminhos possíveis. Isso é bem comum em jogos de romance, onde cada conjunto de escolhas leva à formação de um casal diferente no final, mas também acontece em jogos de ação e aventura. (Saudades, Shadow, the Hedgehog para PS2)
O maior risco está em quem escreveu o roteiro simplesmente não ser muito bom nisso, e tirar a essência dos personagens para gerar mais escolhas (você está ouvindo isso? É o som dos leitores gritando "TAL PERSONAGEM nunca faria tal coisa!!!"), ou entender mal as consequências de uma ação dentro do universo. Por outro lado, bem feito isso abre possibilidades incríveis de explorar os personagens colocando eles para reagir a situações diferentes.
Se você ainda quer um jogo com história diferente do livro, mas não quer mudar a história original, o que você procura é provavelmente um spin-off. Você pega alguma coisa que a saga original menciona que existe, mas não explica de fato, e coloca uma história para se passar nesse lugar ou tempo: origem/juventude de personagens secundários ou até do vilão, aventuras de risco médio entre dois livros da série, eventos um pouco antes ou um pouco depois da história principal, quando o funcionamento do universo ainda é familiar para a pessoa que leu e agora está jogando, mas sem a possibilidade de afetar os eventos canônicos.
Os riscos são os mesmos: roteiristas bons vão criar uma história fantástica que dá orgulho de guardar no coração junto do material original. Roteiristas ruins vão fazer a gente xingar muito no Twitter.
Mas é claro que você sempre pode dizer "Esquece histórias, eu não confio em roteiristas! Eu quero criar meu próprio personagem e explorar mais desse mundo mágico sem encheção de saco!", e existem categorias inteiras de jogos pra isso. Talvez não funcione tão bem num romance ou num mistério, mas para uma história mais aventuresca é bem simples ter um jogo de mundo aberto onde você cria um personagem customizável e explora o mundo com os monstrinhos e tipos de mágica que o livro estabeleceu. (Essa é inclusive a lógica que usaríamos em um RPG de mesa)
O mais importante é que toda adaptação é feita de escolhas: mídias diferentes têm possibilidades diferentes. Eu mesma gosto bastante de jogos, e acho que a interatividade seria a cereja no bolo para algumas das minhas histórias favoritas.
Ana Carolina Dantas é física nuclear e escreve histórias de fantasia e ficção cinetífica focadas em relacionamentos interpessoais. Ela tem alguns contos na Amazon e publica na sua newsletter uma história de vampiros. Ana gosta de RPG, assiste One Piece enquanto lava louça e aparentemente é editora-chefe da VAL (ela nega as acusações). |
Revisão: Luiz Felipe Sá
Lembre que a seção de comentários fica aberta, e adoraríamos ouvir suas opiniões sobre o artigo! Que livro você gostaria de ver adaptado como um jogo?
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