Colo, biscoitos e muito crime

Antes de ler, verifique se você não tem a melhor avó do mundo.

Ler sempre fez parte da minha vida, minha primeira infância foi regada a Turma da Mônica, e o leitor em mim de fato floresceu com “O mundo de Sofia”. Mas, entre as histórias da dentuça de vestidinho vermelho e as aulas de filosofia nos fios brancos de um coelho na cartola, existiram inúmeras tardes de leitura com a minha avó.

Antes de embarcar nessa jornada nostálgica, porém, preciso confessar uma coisa: ler não é meu principal lazer. Na verdade, eu me considero um leitor pobre, pois raramente leio algo fora da minha zona de conforto e não penso duas vezes antes de largar um livro que não me agradou. Ler nunca foi a primeira opção, mas ler com a minha avó, após comer biscoito amanteigado com achocolatado e demais quitutes que ela havia preparado, era o pináculo do entretenimento na minha infância.

E veja: minha vó não lia Turma da Mônica comigo, não, não! Líamos romances, contos, novelas, às vezes séries inteiras, e tudo isso num oferecimento da revista Seleções da Reader’s Digest. A revista não era o foco, mas sim o livro de capa dura que chegava junto, periodicamente, na casa da minha avó. O volume trazia uma seleção (dã) de histórias dos mais variados autores e gêneros, nossa preferência eram os romances policiais da Agatha Christie.

Lembro de me esticar no sofá, a cabeça no colo de vó, e ler (mais ouvir do que ler) aquelas histórias. Por vezes parávamos a leitura para confabular sobre o que aconteceria depois. Vovó quase sempre acertava quem era o assassino da vez. Éramos como dois detetives, investigando as centenas de histórias da Rainha do Crime e de outras tantas autoras e autores selecionados nos volumes da seleção.

Por muito tempo na minha infância, quando perguntavam o que eu queria ser quando crescesse, respondia de prontidão: detetive! Mal sabia meu eu criança que as tardes de leitura com vovó moldaram o escritor que meu eu adulto se tornaria. Devo a ela o meu amor, não pela leitura (eu era preguiçoso demais e ela narrava a história bem demais), mas sim pela literatura. É graças à minha vó que hoje escrevo este texto.

Embora a escrita tenha se revelado anos depois, quase uma década após o fim das tardes de Seleções (a revista ainda existe, mas a editora infelizmente faliu), consigo ver que as leituras com vovó foram pilares fundamentais da minha trajetória como escritor. É fato que uma parte de mim escreve para, quem sabe um dia, ter meu trabalho num volume de capa dura recheado de boas histórias. Mas existe uma outra parte, que escreve para minha vovó, imaginando como seria sua narração numa tarde de biscoitos.

Quando finalizei a primeira versão revisada e editada do meu livro de estreia, “2152”, tratei logo de imprimir na impressora de casa, levei para encadernar e, de lá, diretamente para a casa de vovó. Queria entregar para ela aquele protótipo de livro impresso, ansioso para saber sua reação e opiniões. O segundo livro, “O Inferno Mais Bonito vol. 2022”, eu abri com uma dedicatória a ela, um texto sobre seu aniversário de 90 anos. Antes mesmo de idealizar a edição (e todos aqueles escritos como um livro de fato), cada texto presente no livro foi previamente impresso em folhas soltas e entregue à vovó, com a mesma ansiedade para saber o que ela achou da leitura. Posso dizer que minha vó foi a primeira pessoa que leu meus livros físicos, mesmo que eu não tenha nenhum.

Quem sabe um dia eu escreva um bom romance policial, daqueles que nem minha avó conseguiria desvendar antes do fim.

Foto de Luiz Felipe Sá um homem branco de cavanhaque curto e bigode olhando direto apra a câmera com a testa franzida

Luiz Felipe Sá é escritor desde os 16, revisor desde 2018, editor desde 2022, sócio na agência Polarys , esposo e pai dedicado, colecionador de burnouts e inimigo do capitalismo. Pode ser encontrado no Twitter e Instagram.

Revisão: Mile Cantuária

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