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City of Winter
Antes de jogar, verifique se está todo mundo na mesa preparado para lidar com a lembrança de alguma coisa que sua avó tentou ensinar, mas que você não teve tempo de aprender.
Naquela noite, nas cozinhas da Cidadela nas Nuvens, Maçã Boi ensinou para Gramado, seu sobrinho-neto, a receita do famoso Guisado do Rio da Família Boi. O velhinho já estava cansado de ficar trabalhando o dia todo nas cozinhas do castelão, afinal, foi graças ao Guisado que ele garantiu para si o emprego de cozinheiro quando a família chegou fugida para a cidadela. “Vovô, eu prometo que nunca vou esquecer essa receita!”
Maçã respirou fundo, se controlando como podia para não acertar o sobrinho-neto adolescente com a concha de sopa. Esses jovens! Maçã tentou ensinar para o pirralho como, na Família Boi, nós sempre compartilhamos a colheita, e ele largou essa tradição para guardar mais um dos traumas da Umbra. Tentou ensiná-lo como a Família Boi é resiliente, e ele se esqueceu disso para aprender com os rapazes da Cidadela baboseiras sobre “honra” e cânticos religiosos. Mas, para lembrar da porcaria de uma sopa, o moleque se empolgava todo! “Nunca vou esquecer essa receita”, ora essa… Não se pode confiar nos jovens para nada!
Você, querida e atenta pessoa leitora da VAL, talvez esteja checando agora mesmo se está lendo a newsletter certa. Afinal, você vem aqui para ler sobre métodos seguros de olhar para o Sol, considerações filosóficas sobre orcs queer brigando com elfos fascistas e eventuais listas temáticas de leitura. Aqui é o espaço para falar sobre histórias, não pra ler elas em si (pelo menos, por enquanto). Mas acabei trapaceando e estou contando um pedaço de uma história, porque, no fim das contas, ela é importante para eu explicar como me dei conta de que City of Winter é um RPG que vale a pena ser jogado.
Naquela noite em que jogávamos juntos, ao redor do mapa imenso (e lindo, e pintado à mão!), cercados por umas boas pilhas de cartas e papeizinhos para anotação, Lucas me olhou empolgado e disse:
— Yuri, é sério, a gente não pode jogar essa Tradição fora, não! Vamos segurar essa receita de guisado até o fim do jogo!
Para mim, que jogava como o velho Maçã, aquilo era um baita disparate.
City of Winter é um RPG em que interpretamos uma família em fuga: de nossa terra natal, em algum lugar nas Terras do Rio, até a Cidade do Inverno, onde estaríamos seguros da ameaça da Umbra (o que quer que a Umbra seja, isso vai variar conforme o jogo). Mas o foco da partida não é descobrir se a família vai conseguir fugir ou não — antes, é descobrir de que forma essa migração forçada vai transformá-la, suas tradições e seus valores.
Para cada ponto do mapa que visitamos em nosso trajeto até a Cidade do Inverno, há um baralho novo relativo às tradições daquele local. Cada vez que interpretamos uma cena na nova localidade, podemos escolher transmitir uma tradição antiga para outro membro da família, ou aprender uma tradição nova do lugar onde estamos. Conforme o tempo passa, temos que selecionar quais tradições serão preservadas e quais serão esquecidas. A Família Boi já tinha se esquecido de praticamente todas as tradições da Vila do Rio, sua terra natal, graças às tradições que vinha aprendendo na Cidadela nas Nuvens — a primeira parada em sua jornada! — e às tristes tradições aprendidas nas cartas brancas com uma mancha preta, que representam a Umbra, memórias do quanto haviam sofrido por sua causa.
Ainda restava um último pilar da Família Boi: seu senso de hospitalidade! Isso Maçã queria levar consigo até que chegassem, enfim, à Cidade do Inverno, onde a Umbra não poderia alcançá-los.
Durante os meses seguintes que passaram na Cidadela, Maçã se manteve fiel à sua convicção. Guardou consigo a tradição da hospitalidade, sabendo que não se podia confiar nos jovenzinhos para perceber o que era ou não importante na identidade da Família Boi.
Até que, enfim, como era sabido que aconteceria, os rumores sobre flechas de penas negras e espiões de capas brancas se tornaram realidade: a Umbra alcançava a Cidadela nas Nuvens, e a Família Boi teve que embarcar num navio voador para escapar do massacre. E, velho e frágil como estava, durante a fuga, Maçã morreu.
— Espera, mas morreu mesmo?
— Eu não tenho certeza se era para rolar o dado agora ou depois da passagem do tempo…
— Deixa eu ver as regras aqui, pera lá…
Não lembro como chegamos à conclusão de que Maçã não tinha morrido, no fim das contas. Porém, nesse momento de quase morte — preso entre a consciência de que os jovens da família só se apegam a tradições bobas e a consciência de que Maçã já estava bem próximo de não conseguir guardar mais tradição nenhuma — que eu entendi e me apaixonei por City of Winter. O jogo nos faz perguntar o tempo todo: o que é a identidade de uma família ou de uma comunidade? Quem tem a autoridade para preservar ou mudar suas tradições?
Eu sei que eu sentia, enquanto Maçã, um senso de responsabilidade imensa de garantir que “os jovenzinhos” da família não descaracterizassem nossa cultura conforme nossa pacata família rural era influenciada pela companhia de nobres, guerreiros, mercadores e contrabandistas. De que valia a Família Boi chegar à Cidade do Inverno, se o que chegasse lá fosse totalmente diferente do que saiu da Vila do Rio, como um Navio de Teseu feito de tradições trocadas em vez de madeira?
Mas as regras de City of Winter inventam um jogo muito parecido com a realidade: a maioria das tradições não é tão antiga ou imutável quanto parece, mesmo para famílias que não têm que se refugiar de nada. Tinha um livro inteiro do Eric Hobsbawn dedicado a essa ideia, se me lembro bem. Cada membro de uma família ou comunidade se relaciona com suas práticas e costumes a seu modo, e as formas de garantir sua continuidade são frágeis se não há um aparato institucional e rituais bem estabelecidos. Eu me pego o tempo todo pensando em como estar há tantos anos em São Paulo me separa da cultura em que nasci, mas a verdade é que mesmo as pessoas da minha família que permanecem em Guará já têm um estilo de vida completamente diferente do que tínhamos nem duas gerações atrás.
Que dirá então a Família Boi, fugindo de uma ameaça que mal entende, ganhando e perdendo contatos a cada lugar que passa, forçada a trocar de trabalho e de casa e de roupa cada vez que a Umbra se aproxima? City of Winter permite que a identidade de uma família resida antes no fluxo de suas tradições, na forma como as incorpora ou rejeita, mais do que na fixação fútil de uma série de “pilares”.
No fim das contas, apesar da idade avançada, Maçã conseguiu ainda ver seu sobrinho-neto favorito se casar (ocasião em que, pela última vez, a Família Boi usou suas tradicionais vestes de festa da Terra do Rio) e testemunhou mesmo a entrada da Família na Cidade do Inverno (onde Gramado, agora pai e patriarca da Família, prontamente fez planos de abrir um restaurante de Guisado do Rio).
Provavelmente o maior obstáculo à realização da jornada da Família Boi foi mesmo a alfândega brasileira, com quem Lucas, coitado, teve que bater cabeça para conseguir fazer entrar a caixa do jogo com seus mapas, moedas, cartas e histórias. Espero que, algum dia, consigam produzir uma edição traduzida, adaptada e fabricada por aqui mesmo. Afinal, o Brasil é um país todo feito de histórias de migração, perseguição e refúgio, onde acredito que um RPG como City of Winter vá reverberar em muita gente, como reverberou em mim.
Yuri Cortez comete todo tipo de texto com gosto, exceto os acadêmicos e os autobiográficos. Além da VAL, é facilmente encontrável no TalvezBlog e no YouTube, e aleatoriamente encontrável em outras revistas e saites por aí, quem sabe... |
Revisão: Denize Gaspar
Lembre-se que a seção de comentários fica aberta, e adoraríamos ouvir suas opiniões sobre o artigo! Sua família veio de outro lugar? Vocês tem alguma tradição?
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