Cinco livros para NÃO ler em um dia

Antes de ler, verifique se alguns dos prazeres da vida não são melhor aproveitados em doses homeopáticas.

Mosaico composto com as capas dos livros A mão e a luva, fime de tarde início de noite, daytripper, cinzas do ódio e as incertezas da fortuna.

Quando pensamos em abominações como miojo sabor brigadeiro, frequentemente usamos o meme “eles estavam tão preocupados em saber se podiam que nunca pararam pra pensar se deviam”, e às vezes o mesmo se aplica à literatura. Se você se esforçar, eu tenho certeza de que consegue ler cada item dessa lista em um dia — a maioria nem vai requerer tanto esforço assim, são curtinhos —, mas no post de hoje venho explicar por que eu não acho que você deveria.

Afinal, tem literatura que precisa ser desfrutada.

Capa do livro Fim de Tarde, Início da noite. A capa é composta majoritariamente pelo título em letras brancas contra um fundo em degradê nas cores do por do sol, roxo no alto e amarelo alaranjado em baixo.

Fim de tarde, início da noite – Guilherme Pimenta

Com apenas 94 páginas, você poderia achar que “Fim de tarde, início da noite” seria uma leitura rápida, mas acredite em mim: você quer ler esse livro devagar. Tudo nele foi feito pra você ir com calma.

Os protagonistas do livro são um “ele” e uma “ela” que nunca são nomeados, e que acabaram de terminar. Em teoria, foi um término pacífico, mas que ainda dói, especialmente enquanto eles vão juntos a um casamento antes de tornar o término público. Essa não é uma história onde “coisas ficam acontecendo”. Não tem encontro dramático com ex, tensão romântica numa cena de dança, fuga estrambólica com o bolo de casamento. Essa é uma história de duas pessoas conversando, e pensando, e pensando, e conversando. “Será que eu sei explicar minha profissão quando os parentes chatos perguntarem? Será que eles estão me julgando? Por que eu me importo se eles estiverem? Será que alguma coisa podia ter sido diferente do que foi?” E o Guilherme Pimenta faz isso numa prosa às vezes poética, meio “fluxo de consciência”, entremeada de diálogos reais, cheios daquele humor de quem está fazendo piada para não encarar os sentimentos mais pesados.

Entre as considerações sobre relacionamentos e as descrições sufocantes do que se passa numa mente neurodivergente durante uma situação social estressante, eu acho que esse é um livro pra ler um pouco, fazer uma pausa, mandar uma citação para um amigo e ter uma longa conversa filosófica, depois dar um respiro e voltar no dia seguinte.

Capa do quadrinho Daytripper. O fundo é branco, com a ilustração de um homem sentado num banco de praça com um cachorro ao lado, mas da cabeça do homem saem imagens em cores de aquarela contendo uma maquina de escrever, arranhacéus e duas pessoas de pé em um barco.

Daytripper – Fábio Moon e Gabriel Bá

Apesar dos autores serem brasileiros, esse quadrinho precisou primeiro ser publicado e aclamado na gringa antes de ganhar uma chance aqui. “Daytripper” é um quadrinho com cores bonitas, e eu adoro o estilo de desenho do Moon. A história é sobre Brás, um escritor filho de um escritor, que trabalha escrevendo obituários no jornal e luta para escrever seu primeiro romance; e vai seguindo a vida do protagonista desde a infância até a velhice de forma não linear, bem reflexivo e poético. 

Eu não acho que leituras reflexivas e poéticas se prestam a serem devoradas em menos de 24 horas, as pausas são essenciais para decantar as impressões e deixar as reflexões rodando no plano de fundo.

Em particular, eu gosto do sentimento pervasivo de “Daytripper” que é o de ser uma pessoa “esperando a vida começar”. Quantas vezes a gente já não passou por isso? “Quando eu terminar o ensino médio/faculdade, aí sim eu vou fazer coisas”. “Quando eu terminar esse projeto, aí sim minha carreira deslancha”. “Quando eu tiver sucesso nesse item, aí, sim, vou ter tempo para aproveitar o resto”... E gosto mais ainda do recurso narrativo usado pra fazer você questionar esse sentimento: em cada capítulo, depois de alcançar um “marco” da vida, Brás morre de maneira irônica e inesperada, tornando o fim de cada capítulo uma oportunidade perfeita de ficar uns minutos olhando as imagens bonitas e sentir sentimentos.

capa do livro cinzas do ódio. A capa é majoritariamente em tons de rosa e roxo, mostrando as silhuetas de um homem e uma mulher de pé um diante do outro, e uma versão em close das mesmas silhuetas com as bocas quase se tocando.

Cinzas do ódio – Raiane Vianna

Talvez “poético e reflexivo” não seja o seu sabor favorito de livro, então agora vamos falar sobre um romancinho de fantasia, sim? “Cinzas do ódio” se passa em um mundo que está se reconstruindo após um grande apocalipse demoníaco. O clero é a organização mais poderosa, responsável por limpar as áreas de demônios para que cidades possam ser recuperadas e habitadas. Caçadores de demônios mercenários, não associados ao clero, são ilegais, e por isso caçados também. Helana é uma clériga, e Ronan é um mercenário que odeia clérigos. Quando os dois precisam se unir para derrotar um demônio mais forte, começa a surgir um companheirismo entre eles, e conforme eventos misteriosos vão acontecendo os caminhos dos dois continuam se cruzando, dando a oportunidade de um relacionamento se desenvolver.

“Cinzas do ódio” é um livrão de 404 páginas, você teria que se esforçar pra ler ele em um dia só, mas a verdade é que eu não acho que você devia correr pra ler ele em 3-4 dias. Porque veja bem: a história é muito gostosa e confortável (com partes de ação e tensão, sim, mas ainda bastante confortável) e é livro único! Tem uma hora que você simplesmente não quer que acabe! Eu li, e o livro foi se tornando um companheiro, um amigo, e quando acabou e fiquei tipo “peraí, hoje a gente não vai se ver? [carinha triste]”

Capa do livro as incertezas da fortuna, o fundo é azul e abaixo do título há a ilustração de quatro personagens. Da esquerda para a direita: um homem de cabelo castanho cacheado até o ombro, com um sorriso maroto, uma moça ruiva de cabelo comprido e expressão séria; um homem de cabelo comprido amarrado em rabo de cavalo, vestindo um colete elegante e com expressão séria; uma mulher negra de cabelo comprido com uma faixa na cabeça.

As incertezas da fortuna – Marina Orli

Agora vamos falar de coisas rápidas. Você é o próprio Sonic, “gotta go fast” etc, etc. Pois bem. “As incertezas da fortuna” é uma história cheia de acontecimentos. Mylène e Gaspard se dão bem e tem um grande carinho e respeito mútuos, então eles concordam com um casamento de conveniência para tirar Mylène do alcance do pai canalha dela e dar continuidade à linhagem da família do Gaspard e outras baboseiras de nobreza. Porém, Gaspard é um policial, e quando Henry De La Source, o criminoso mais lindo e charmoso procurado do momento, aparece ferido no local onde Mylène estuda medicina clandestinamente, ela de repente tem um segredo que não pode contar ao amigo e noivo. E como De La Source poderia ser culpado pelo atentado ao Parlamento se ele também foi pego na explosão? Muitas investigações, muitas intrigas, muitos auês.

Então por que raios você não leria tudo de uma vez?

Para curtir o processo!

“As incertezas da fortuna” foi publicado na Noveletter, uma newsletter que publica novelas como folhetins semanais. Agora que a história está completa eu não acho que você precise esperar uma semana entre um capítulo e outro, mas pra mim as pausas são parte do conjunto, um jeito de apreciar os ganchos dramáticos no fim de cada capítulo, e uma oportunidade de ler de forma social indo surtar com os amiguinhos e fazer teoria sobre o capítulo da próxima semana.

Inclusive, eu recomendo quase tudo da Noveletter, vão olhar o site delas.

Capa da edição da editora principis de A mão e a luva. A ilustração tem a silhueta de uma moça parada no centro de uma balança. de um lado da balança há a silhueta de dois homens, e mais um do outro lado. A moça tem o dedo indicador no rosto, mostrando indecisão. Acima da ilustração há uma divisa vermelha contra a qual está o título.

A mão e a luva – Machado de Assis

O formato de “capítulos semanais e você que lide com o suspense” não foi inventado com as fanfics no Wattpad e nem com a Noveletter. De fato, o formato folhetinesco é uma grande constante na nossa literatura. Quase tudo que Machado de Assis publicou saiu assim, e fora do Brasil temos grandes clássicos como “O Conde de Monte Cristo” e “Crime e castigo” saindo de forma seriada primeiro.

Então, falando sobre o nosso querido Machado, o livro em que mais notei o formato folhetinesco foi “A mão e a luva”, produto da fase Romântica (da escola literária Romantismo) no início da carreira do autor. O livro é mais simples do que as obras que estamos acostumados, o próprio Machado diz que é “um esboço de alguns caracteres [personagens]” e no prefácio da edição de 1904 o próprio Machado fala que faria algumas coisas de forma diferente se tivesse escrito o livro depois.

Mas “A mão e a luva” ainda é ótimo. Na minha opinião, ele cria cada personagem com três elementos: caráter, motivações e ações. Quase sempre Machado começa te apresentando o caráter da personagem: “este é um homem honesto e ambicioso”, “essa é uma senhora discreta e solitária”, etc. Um pouco mais pra frente ele te entrega ou a motivação da pessoa, ou uma descrição das ações dela, e ler com uma pausa entre os capítulos é um exercício de completar o quebra-cabeça: se essa pessoa tem esse caráter e essa motivação, qual será a próxima ação dela? Ou se ela tomou essa ação, qual terá sido a motivação? Pra mim, ler muito rápido tiraria esse prazer, já que no fim ele invariavelmente te dá as respostas.

Na música, dizem que as pausas são tão importantes para a melodia quanto as notas. A literatura também tem um pouco disso. Pra mim, as pausas são um momento de dialogar com o livro, então por mais que eu goste de leituras ágeis e impossíveis de largar, eu também valorizo esses livros e formatos que convidam a ir mais devagar.

E você? Quais livros você acha que ficam melhores se apreciados com mais calma?

Fotografia de Ana Carorina Dantas, uma mulher branca de cabelo joãozinho, usando óculos retangulares. Ela tem sobrancelhas grossas e uma trança fininha caindo sobre o ombro.

Ana Carolina Dantas é física nuclear e escreve histórias de fantasia e ficção científica focadas em relacionamentos interpessoais. Ela tem alguns contos na Amazon e publica na sua newsletter uma história de vampiros. Ana gosta de RPG, assiste One Piece enquanto lava louça e aparentemente é editora-chefe da VAL (ela nega as acusações).

Revisão: Luiz Felipe Sá

Lembre que a seção de comentários fica aberta, e adoraríamos ouvir suas opiniões sobre o artigo!

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