Antes de ser a aranha, seja a lagarta (ou A necessidade do vazio)

Antes de ler, verifique se não despertou de sonhos intranquilos metamorfoseado em um horrível inseto.

O impulso criativo é uma característica inerente à condição humana. E este texto é para você que, como eu, dá vazão a esse impulso produzindo arte todos os dias.

Digo “todos os dias” porque só conto os dias em que produzo. O resto parece tempo morto. Essa é a razão do texto, e do problema que quero discutir.

A VAL é uma newsletter para leitores, mas talvez você também seja, ou almeje ser, um criador. Talvez você não escreva, como eu, mas tenha uma paixão ardente por outro tipo de arte, ou por criar conteúdo para a Internet, fazer colagens de papel, culinária, origami.

Nós, escritores, pintores, artistas em geral, temos essa necessidade, essa comichão lá no fundo da cabeça, que nos impele a fazer algo novo, algo que represente nossa visão, e queremos, é claro, que o resultado de nossos esforços criativos seja não apenas excelente, mas reconhecido como tal. Alcançar isso exige, acima de tudo, dedicação e trabalho constante.

Se você, como eu, escreve livros há algum tempo, já entendeu que existe uma lógica de mercado por trás do sucesso de certas obras e obscuridade de outras. Em suma, arte não é só expressão, nem só ofício. Arte é, entre muitas outras coisas, trabalho. E trabalho pode ser exaustivo, especialmente se sua escrita é como um segundo emprego que não paga nada comparada ao primeiro, de oito ou mais horas diárias. Pode até ser um trabalho gratificante, porque você faz por escolha própria, mas, ainda assim, vai ter um custo em energia e saúde mental. É por isso que estou escrevendo este texto, quero te convencer a tirar férias da sua atividade artística. 

No início da minha carreira, me dediquei a escrever de forma livre meu primeiro romance, partindo da noção equivocada de que uma escrita sem técnica seria uma escrita sem vícios, e de que eu poderia fazer fluir naturalmente a criatividade desde a primeira à última linha de uma história. Por sorte, sei reconhecer um erro quando cometo um, e logo recorri ao estudo das técnicas de escrita e estruturas narrativas para dar melhor forma ao que viria a se tornar “Máscaras para os mortos”. Nesses estudos, comecei a pesquisar, também, questões mercadológicas. Aprendi bem rápido que não se vende o livro, mas a persona do autor. Para alcançar público, antes de falar de sua história, você deve projetar um ethos, uma versão de você a partir da qual o público vai se interessar ou não pelo que você produz. Essa imagem projetada é efêmera: vai embora com o vento no oceano de outros criadores, flutuando nas marés caprichosas dos algoritmos das redes. Se você não quer ser devorado ou afundar, só existe uma alternativa: você precisa produzir com frequência. 

Alguns gêneros literários permitem essa produção frenética, mas a escrita, via de regra, é um processo lento, não dá para manter uma velocidade vertiginosa de produção se você não trabalha com isso em tempo integral. Então o consenso geral é que, para um autor se manter relevante, é necessário que publique uma obra por ano. Esse, eu percebi, seria meu maior desafio, mas consegui vencê-lo como venci vários outros percalços do trabalho criativo: aprendi a ser uma aranha. 

A aranha não pensa sobre a teia que tece. Ela não se preocupa com a simetria, ou a espessura dos fios, ou as interseções entre as linhas, ou os padrões espiralados que vai formar. A aranha tece porque ela é uma aranha e tem toda aquela teia dentro de si. Ela escolhe um lugar que lhe pareça apropriado e começa a tecer. Se a teia não ficar boa, se o local não permitir que a estrutura permaneça firme, se o vento e a chuva destruírem o fruto de seu trabalho, ela procura outro lugar e começa outra vez. Então me tornei uma aranha. Foi assim que venci a autocobrança, o bloqueio criativo, a tarefa árdua de completar um primeiro romance. 

Sendo uma aranha, meu único foco era a produção. Estabeleci uma meta diária de palavras, mil e duzentas, para ser exato, e uma meta anual de cem mil palavras, o tamanho de um romance de fantasia médio. Por cerca de três meses no ano, todos os anos, desde 2017, produzi, no mínimo, nessa quantidade. O mantra era o mesmo: “seja a aranha”. Ou, se você não gosta de metáforas: “o texto não precisa ser bom, só precisa existir”. 

Claro que houve edições, polimento, leituras beta, houve o olhar cuidadoso, mas só depois que eu tinha sido uma aranha por três meses, tecendo porque, se eu não tecesse, toda aquela teia se solidificaria dentro de mim, e eu morreria sem dar vazão àquilo que me define como indivíduo. Não sei se a teia das aranhas de fato se solidifica dentro delas, mas sei, por experiência própria, que as histórias não contadas se cristalizam dentro de nós e formam teratomas grotescos em nossas mentes.  Então eu teci, como uma boa aranha, e fiquei muito bom nisso. Nos últimos dois anos, escrevi mais de trezentas mil palavras de ficção. Ano passado, publiquei dois romances completos. 

Também cheguei muito perto de um burnout total.

Não conseguia trabalhar direito, nem ler por períodos prolongados, perdi a vontade de jogar RPG, videogame, qualquer atividade era mortalmente cansativa.  Produzi ótimos textos, obras das quais me orgulho, e vi as leituras subindo, meu nome sendo reconhecido, de forma bastante expressiva para um escritor independente de fantasia sombria.  No fim de novembro de 2023, tudo o que eu queria era parar. Sentia que precisava de uns três meses de férias completas para me recuperar da exaustão. Não posso tirar férias do meu primeiro emprego por esse tempo, mas posso tirar férias da escrita, e estou tirando.

Este artigo não conta, ele é um ensaio bastante pessoal, e a equipe da VAL vai fazer o trabalho realmente difícil, que é revisar o meu teratoma… digo, meu texto.

Nesse período de relaxamento, estou reaprendendo algumas coisas que deixei de lado, como, por exemplo, a necessidade do vazio. Vivemos o tempo todo em meio a feixes ininterruptos de informação, conectados por aplicativos, redes sociais, responsabilidades e obrigações. Tudo se torna um grande fluxo sem fim de diálogos, projetos, prazos, combinados, acordos e objetivos. Esquecemos de nós mesmos, porque estamos focados demais naquilo que queremos produzir. Não posso deixar de temer que o resultado final seja algo enfraquecido, ralo, insubstancial, porque prematuro, gestado rápido demais. 

Então comecei a fazer coisas num ritmo mais lento, de modo descompromissado, e essas coisas têm me inspirado muito. Fui a museus, assisti a palestras de colegas escritores, saí com amigos, joguei novos jogos e rejoguei jogos antigos. Fui fazer trilha, tomar banho de mar, ficar longe de qualquer coisa que pudesse se assemelhar a um teclado ou tela de processador de texto. Li livros sem me preocupar em fazer resenhas para o instagram, ou contar a quantidade de leituras. Estou com um calhamaço de setecentas páginas na minha cabeceira, e não pretendo terminá-lo tão cedo, vou capítulo a capítulo, devagar, antes de dormir. Tenho ouvido novas músicas, planejado viagens e, no geral, aproveitado meu tempo livre tentando me afastar da culpa de não estar sendo produtivo.

Pode parecer bobo, mas todas essas coisas haviam sido deixadas de lado em favor do desejo voraz de terminar meus romances, de fazer aquilo que me dá sentido enquanto ser humano, que é produzir arte. No meio desse turbilhão que é o mercado editorial independente, a escrita é só uma parcela do que caracteriza produção. Precisamos criar posts interessantes, gravar vídeos, fazer lives, elaborar fios de tweets encadeados que alcancem muita gente, na esperança de, no final, conseguir um ou dois novos pares de olhos sobre nossos escritos.

 A questão é que eu me deixei capturar pelo “produzir”, e acabei esquecendo que a arte, para existir, precisa de vida. Sem novas experiências, sem parar para apreciar os detalhes, os momentos fugazes que cada dia proporciona, com uma ou outra ideia, sensação ou reflexão, sem um período de verdadeiro descanso, livre dos estímulos incessantes, da autocobrança, da necessidade de ser percebido, a arte não pode nascer. Ela nasce da autopercepção e da percepção do mundo, e isso só podemos alcançar com a mente limpa e os olhos e os ouvidos bem abertos.

Por isso, tenho um novo mantra: “seja a lagarta”. A lagarta não pensa em flores ou em pólen, ela não pensa nas asas multicoloridas que um dia abrirá para o vento e flexionará com alegria. Ela nem sequer pensa na crisálida que vai formar. A lagarta está preocupada com uma única coisa: o banquete delicioso de folhas (ou, se você prefere a fantasia sombria, como eu, de larvas insuspeitas em um formigueiro, ludibriadas pelos feromônios da lagarta a acreditar que se trata de uma formiga-rainha) ao seu dispôr, para se fartar dele até que seu corpo esteja pronto para a próxima etapa. 

Já me sinto inspirado para o próximo trabalho, tenho ideias em mente para muitos novos livros, na verdade, e tenho alguns livros prontos que precisam de minha atenção, uma reescrita ou edição mais cuidadosa antes que possa considerá-los prontos para publicar. Ainda assim, vou me obrigar a descansar por mais tempo, a aproveitar mais os dias, alcançar um ponto em que me seja natural esse estado de “não-produção”, porque, em verdade, ele é uma etapa crucial do processo, o acúmulo de referências, de bagagem, de novas ideias. É o meu banquete de lagarta-carnívora-que-come-larvas-de-formiga. Vejam, a inspiração já está cantando, eu estou fazendo analogias mais mirabolantes, por pura diversão. Dane-se a integridade da mensagem, vocês vão captar de qualquer forma, e eu vou me divertir mais sendo mais bobo e mais mórbido. Qualquer que seja o seu tipo de lagarta favorita, pode me imaginar como uma, me refestelando de tudo o que eu puder aproveitar até que, inevitavelmente, precise tecer uma crisálida. 

É isto que pretendo fazer pelos próximos meses (com exceção deste ensaio ou talvez um conto, como pequenos acidentes de percurso): me fartar da vida e me desligar o máximo possível do fluxo infinito de autocobrança e demanda por mais produção. Tenho um banquete para devorar antes da próxima metamorfose, e que transformação ela será, porque, de lagarta, após uma pupação nova e estranha, que ainda não sei como se dará, serei novamente uma aranha.

 Talvez, agora, alada, finalmente. 

Foto de M. P. Neves, um homem branco de cabeo bem comprido e cavanhaque. Ele usa óculos e uma caiseta preta, e olha bem sério para a câmera.

M. P. Neves, autor da trilogia “A Ruína de Noltora” (Amazon), não acredita em finais felizes e bebe um copão de lágrimas de leitories todo dia de manhã. Quando ninguém está olhando, escreve histórias fofas como “Música Roubada” (Amazon). Os finais ainda são trágicos.

Revisão: Mile Cantuária

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