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A alegoria do monstro sob a ótica queer
Antes de ler, verifique se você não é o monstro dentro do armário.
Seja você familiarizado ou não com as alegorias utilizadas em histórias de ficção especulativa, já deve ter reparado que os monstros (em todas as suas variações e espécies) costumam retratar o que é visto como anormal em cada época. O monstro representa o outro, o diferente, o estranho.
Em “Carmilla” (escrito por Joseph Sheridan Le Fanu em 1872 e que inspirou Bram Stoker a criar seu Drácula), essa estranheza aparece sob a forma de uma vampira bela, sedutora… e lésbica. Apesar de ser um marco na literatura vampiresca, “Carmilla” é um produto de sua época e faz questão de demonizar tanto a personagem-título quanto seu desejo por outras mulheres.
A condessa Mircalla Karnstein (nome verdadeiro de Carmilla) é uma abominação não somente por beber sangue humano ou transformar-se em gato, mas principalmente por ser uma mulher que desejava outras mulheres, corrompendo-as. Carmilla é cruel e vê a ingênua Laura como sua posse, sua presa — pois era assim que pessoas queer eram vistas naquela época: como predadores, animais, demônios. Ou, simplesmente, monstros.
Estreando nas HQs de “Sandman” em Outubro de 1989, o Coríntio é a criação da qual Morpheus, o senhor do reino do Sonhar, tem mais orgulho. Loiro, alto e de porte atlético, o Coríntio possui um pequeno “defeito”: bocas no lugar dos olhos. Essas bocas se alimentam dos olhos de suas vítimas, das pessoas que ousam olhar para ele por tempo suficiente para que uma atração floresça. Levando em consideração que sua versão nos quadrinhos é um homem gay na década de 80, o paralelo é óbvio. O Coríntio não somente representa a homofobia internalizada, mas também o medo daquilo que nascia de um simples desejo e poderia culminar em morte: o HIV.
Há uma passagem bíblica na qual Jesus diz que, se teu olho te faz pecar, você deve arrancá-lo. Imagine, então, a culpa se seus olhos acabam se demorando demais nos de alguém do mesmo gênero, como se você pudesse se alimentar dessa pessoa só com o olhar. O terror do Coríntio reside no terror que nos é induzido por sermos como somos, por sentirmos de uma forma julgada como errada. Se esse sentimento for correspondido, ele pode se voltar contra você e devorá-lo com a mesma fome que o originou — pelo menos era assim durante a trágica epidemia de HIV da década de 80.
Personagem-título da HQ de ND Stevenson adaptada como filme da Netflix, Nimona se tornou um ícone entre pessoas trans (principalmente de gênero fluido e não binárias) graças à sua habilidade de mudar de forma. Marcada como uma aberração apenas por ser quem é, Nimona vê um reino inteiro se voltar contra a sua existência e enxergá-la como o grande inimigo a ser derrotado.
Mesmo com abordagens levemente diferentes na HQ e na animação de Nimona, ambas as mídias expõem de forma bem clara e corajosa a vilanização e a desumanização de pessoas transgênero — e os papéis fundamentais da mídia, governo e forças policiais nesse processo. A cena do filme onde Ballister (um personagem gay) insiste que “seria mais fácil se Nimona fosse uma menina” serve ainda para mostrar que padrões de pensamento transfóbicos existem até mesmo dentro da própria comunidade LGBTQIA+.
A alegoria do monstro representando pessoas queer vem evoluindo através dos séculos. Depois de corroborar os preconceitos de uma época e servir como metáfora para o maior medo de uma geração, essas criaturas hoje falam diretamente com os seus iguais no mundo real através de histórias que criticam os valores que as mantiveram à margem da sociedade. Se antes as crianças tinham medo de haver monstros dentro dos armários, hoje elas querem se fantasiar como eles nas festas e usar roupas com suas figuras estampadas. O monstro passou de antagonista a protagonista, finalmente tendo o direito de contar sua própria história. Ser monstro não é mais motivo de vergonha. Como bem disse Guillermo Del Toro em seu discurso ao vencer o Globo de Ouro com “A Forma da Água”:
“Desde a infância, sou fiel aos monstros. Fui salvo e absolvido por eles, porque os monstros, acredito, são santos padroeiros de nossa bem-aventurada imperfeição, e eles permitem e incorporam a possibilidade de falhar.”
Com uma obsessão nada saudável por coisas sombrias, Rai Gumerato desde criança aprendeu a gostar mais das trevas do que da luz. Suas narrativas seguem a linha tênue entre fantasia e horror e já lhe renderam prêmios na plataforma Scriv e participações em antologias. Criou em 2023 a newsletter Especulação. Seus links estão aqui. |
Revisão: Mile Cantuária
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